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segunda-feira, junho 28, 2010

PELA MANHÃ DO MEU INQUIETO ACONTECER


fotografias de rocha de sousa


Tenho a mão pousada na mesa
e vejo os dedos começarem a desaparecer.
Parecem esbater-se sob a névoa ali dispersa,
já não existem porque já deixaram de ser.
O lápis cai, perdi a mão direita.
Ao passar um dos braços restantes pela cara
não há nada para sentir e um horror espreita
dentro de mim, morro de forma rara
por fora e por dentro, sem cabels nem pernas,
como aqueles corpos cobertos de flores ternas
e cada vez menos visíveis, sepultados sem dor,
queimados, enfim, por um lume em torpor,
sem dor,
claramente sem amor.
Eu também, depois de me ter desaparecido o torso
embora o coração ainda bata
e este olho tombado na cadeira de lata
esteja quase a desprender-se do cérebro e sem esforço.
Agora morri.
Não sei quem escreve por mim e devagar sorri.
_______________________________________
excerto de «Talvez Imagens e Gente num Inquieto Acontecer»,
livro de Rocha de Sousa, em preparação

quarta-feira, junho 23, 2010

AS LETRAS E AS ARTES, PRÁTICA E EDIÇÃO

tácnica mista rocha de sousa

Esta espécie de ilustração foi trabalhada em pintura, fotografia digital, colagem e fecho. Irá recobrir uma boa parte da capa de um livro. Trata-se de uma edição de Maria João Duarte, a partir da sua tese de doutoramento. Este livro será apresentado como qualquer outro, mas não deixa de apresentar conteúdos ainda hoje bem pertinentes: a oposição à ditadura, em Silves e no Algarve todo. O núcleo físico onde «decorre a acção» é a cidade de Silves, muito traumatizada pela PIDE e em face (nos anos 50/60) dos núcleos políticos emergentes na indústria da cortiça, ali onde se concentrava o maior centro produtivo do mundo, na transformação e exportação. Fui testemunho desse esplendor e dessas tensões, quando o governo passou a exportar a cortiça em prancha, logo que tirada das árvores, ofercendo ao estrangeiro uma riqueza em bruto para manejo bem lucrativo. Os donos das terras de sobreiro enriqueceram ainda mais, os trabalhadores ficaram mais ou menos ao Deus dará.

O livro chama-se «Silves e o Algarve, uma história da oposição à ditadura». Esta imagem, partindo de muitos dados visuais de Silves, nos seus diferentes aspectos, multiplicados e reassociados, entrecruzando-se numa atmosfera de quase ruína, tarde vazia, gente recolhida, monumentalidade de restos das fábrica -- e, sobre tudo isso, contra o céu, uma insólita visão que absorve a metáfora sobre o lado monstruoso e vigilante de algo que nos amordaçava, prendia, e por vezes fazia desaparecer. Hoje o sonho é claro, e as ruas não têm este clima terroso dos anos 50. A autarquia tem dotado a cidade de uma panóplia de bens e serviços aceitáveis. A memória dos patrimónios antigos convive com a arquitectura da zona histórica e da baixa em termos urbanos e lúdicos, junto ao rio. Obviamente, já não há as grandes fábricas de cortiça, nem os 6.000 trabalhadores daquele tempo, nem sequer a Câmara pôde segurar o excelente museu da indústria cortiçeira, obra museológica de importante sentido divulgador e pedagógico, premiada internacionalmente. Esta cidade, aliás, padece de coisas ainda sinistras: reconstruiu um teatro dos anos 20, há cerca de um ano fechado; adaptou uma edificação de marcas arabizantes como Institudo Superior de Estudos Árabes: faz algumas exposições e está às moscas, apesar da sua beleza e do seu aprazimento. As modificações da margem do rio Arade funcionam, como as psicinas e as instalações para feiras industriais, comercias, ou da agricultura. Ninguém pode imaginar verdadeiramente a que degradação chegou esta importante cidade da memória árabe e do sorriso que conquistou, entre omissões, nestes últimos anos.

quarta-feira, junho 16, 2010

AS IMAGENS QUE MORAM NO CAMINHO DA FÉ




A velha senhora estava a rezar o terço no filme que secretamente fiz desse gesto. O segredo da arte, no vídeo ou no espaço do medo, é semelhante ao que se passa com o mistério da fé. A senhora dizia palavras para dentro de si, nomes e verbos cujo vago sentido se projectava no interior da cabeça. Aqueles dedos, envelhecidos mas estranhamente decididos, permaneciam imóveis, só se moviam, invisíveis, quando a oração levava à escolha de outra rigidez redonda. Nesses instantes, a memória já guardada abria-se em imagens curtas, superfícies lisas, convexas, brandas, entre outros registos, talvez contrários, a dois milímetros do lado côncavo, milenário, de um fragmento de crâneo. Ou isto ou algo de semelhante, vagamente a cores. As memórias assim, feitas de presenças ininteligíveis, ou quase, serão restos da memória toda, lixo também, cortes neuronais sem princípio nem fim? Essa realidade virtual, certamente absurda, pode servir para fins que desconhecemos, como os pingos de tinta, sobrepostos, a que conferimos autenticidade estética, porventura plástica, sem os limpar do universo da pintura em redor. Essa escolha parece por vezes maquinal, um acaso sublimatório. A arte acolhe e coisifica cada instante assim, procurando dar ao visível meios de decifração do inominável. É a curta entrada de ar nos pulmões quando sofremos uma paragem cardíaca logo superada pelo fio da electricidade restante. Então podemos voltar ao lado sólido e redondo do real, dedos a contar mais uma Avé Maria, por exemplo, no encobrimento das emoções, a razão como que suspensa, motor parado, o sangue a correr sem se sentir, impulso aparentemente arbitrário que enche toda a rede vascular dos corpos. Nas veias que serpenteiam só o manto cutâneo daquela pele enrugada, tocada pelas pétalas sépia das margaridas. Na Avé Maria que não passa de um pretexto para ordenar a simulação sisifiana do destino humano, paragens e andamentos fortuitos, cansaços e imagens sem nome, duas avé marias no corredor da garganta, imagens atrás dos olhos, olhos fechados ou abertos, tanto faz, eles voltam-se ao contrário para receber as mensagens do cérebro. Mãos postas. Um rosário faiscando. O filme. E entretanto, num espaço milimétrico, outra imagem, diferente, sem referências, caída para o lado da retina numa cintilação deslavada e abstracta. Um frame do ser? Um pingo da alma?
Aqui fica, para quem me ler ou ouvir, a importância transcendente das pequenas e inúteis deixas do ser, partículas do invisível, o lado inconcebível da vida como segredo que se desvenda na retoma da aspiração do ar, suicídio interrompido, talvez princípio da fé contada em avé marias e da arte em restos de tinta volátil. Ou o mais remoto instante que parece legitimar a infinitude de cada percepção atrás do limite.

terça-feira, maio 11, 2010

O PAPA BENTO XVI E OS MENINOS LADINOS



O Papa. Do Papamóvel. Com as suas insígnias no avião em que voa e em que chega. Nas visitas. Portugal deve ter aumentado a dívida. Mas os meninos ladinos, portugueses em geral, mesmo laicos e um pouco estouvados, estão a correr para o Terreiro do Paço. Paço engalanado e uma missa para 200.000 pessoas. É uma grande honra a gente poder gastar assim quando o Iva vai para 22%, valha-nos o Santo Padre João Paulo II. Muita gente lamenta aquela deliberação, em 1537, no papado de Gregório VII, sobre a obrigatoriedade do celibato para todo o clero. De acordo com a lei canónica, e desde então, o voto de celibato considera-se quebrado quando o padre se casa, mas não necessariamente quando este tem relações sexuais ocasionais. Viviam à larga, os senhores da Igreja, Papas, Careais, Arcebisbos, Bispos, toda a grande infantaria dos padres. Ainda foi muito tempo para os mais precisados casarem ou terem amantes sem poluir o nome de Deus. Ouvi histórias do alto clero, incluindo, pelo menos, um Papa, que me deixaram atónito pelo avanço dos costumes. Quem é que fez a história dessa época inebriante, entre genealogias esquisitas? Quem descenderá de um papa Alexandre, cuja numeração esqueci? E havia um estranho gosto pelo incesto, não só na Igreja, está bem de ver, e há filmes ingleses (made in BBC) que tratam sem pudor e com grande galanteria esses comportamentos «desviantes», casais irmãos, luxúria entre brocados e prataria. Os ingleses são sábios, ficaram com a Igreja que resultou do Cisma, mais decoro, mais minimalismo, mais cânticos, e um certo acréscimo de fantasmas, meninos, meninas e velhos enterrados nos jardins frondosos das belas Quintas fortalecidas, cheias de torres e sótãos escabrosos, lindíssimos, para tralha menos usada e encontros romanescos.
Mas deixemos isso. O Papa Bento XVI, em visita a Portugal (neste momento está a descansar), esse sim, é a ele que devemos indagar, questionar, louvar eventuais sorrisos. É tímido, dizem. Gostaria de ter ficado o resto da vida a estudar. Talvez lhe ocorresse rever a tardia atribuição à mulher, pela Igreja Católica, creio que por volta do Conílio de Trento, de uma alma. Dantes, embora pertencesse a uma qualquer burguesia, era de condição biológica e teosófica praticamen-te igual a uma cadela, a uma gata doméstica. E todas estas circunstâncias, na contingência mental de padres e povo crente, foi rebolando pelos séculos e até se instalou, radiosamente, na estrondosa basílica do Vaticano, S. Pedro. Hoje, o luxo é maior, mas o poder menos político, com manchas de sujidade sobre os livros do Vaticano II. Quando se ouviu falar num Papa ainda novo, que tomava banho na piscina daquele pequeno reino palaciano e dizia que a missa tinha de ser dita de frente para os fiéis, muita gente estremceu de medo; mas a maioria viu ali um homem igual aos outros, com funções difíceis e diferentes, mas capaz de rir e apontar escolhas. Depois envelheceu e julgo que o canonizaram. Não sei se era excepção para tanto. Mas penso, quer nele quer no actual Papa, quando penso no que lhes terá passado pela cabeça ao escreverem encovadas encíclicas, aparentemente sobre problemas humanos profundos. Porque, em verdade, nada daquilo é para o comum dos mortais. Onde está o estudo capaz de tocar nas razões humanas e espirituais que aconselham o fim do celibato? E as mulheres, além de freiras, misseiras e figurantes dos grandes espectáculos perto do Coliseu, em Roma, ou no imenso terreiro de Fátima, onde se acomodou a maior basílica do mundo? Podiam fazer um pouco mais, não é difícil imaginar, conferindo-lhes funções de fundo, de partilha e acompanhamento dos seus irmãos e irmãs.
Em pleno século XXI, o que faz com que o homem mais poderoso da Igreja Católica, sobretudo Romana, mantenha, sem pudor nem razão, estas viagens de chefe de Estado, esta pompa descabida na memória das crianças abusadas por padres, moda em curso, além das vestes desenhadas de propósito, cadeiras novas, rcintos espectaculares, liturgias sem nexo, roupas ou paramentos sem austeridade, num teatro imperial, dois dedos em riste? A Igreja possui belos templos, e os países também, todos usáveis por um Papa que viesse de longe, sem farda, nem dourados, um pouco à maneira de Cristo, carismaticamente solto e breve, vestindo tecidos brancos. Não era mais decente, mais avançado, que não se usassem senão os equipamentos que existem? A missa poderia ser nos Jerónimos. Quem não coubesse veria a cerimónia como vão ver aqueles que não couberem no Terreiro do Paço. E um debate na Universidade, sobre o celibato, o papel da mulher, o planeamento familiar, as questões da homosexualidade, como lhe reconheceram direitos iguais a outros, aos heterosexuais, porque razão a liturgia não se simplifica e não dialoga mais em cerimónias lavadas, naturais, despojadas de passos, reversos e anversos? São tudo temas para uma visita rica e pedagógica, com abordagem da pedofilia e de outros maus jeitos da Igreja dos nossos dias. Tantos estudiosos, teólogos, dirigentes de importantes departamentos religiosos, e nenhum rompe com a castrante imobilidade das regras? As igrejas actuais padecem das maiores distorções e competições bárbaras, umas vivem em luta, misturadas com o poder civil, arrasando povos com a sua feroz leitura da chamada voz de Deus, incapazes de se tornarem reserva da paz, da reflexão, do convívio. E outras ainda praticam o genocídio. Encher Fátima com um milhão de peregrinos não pensantes, em martírios de promessas fúteis, comoção transitória ou rezas pelo fim da violância doméstica, outro problema a que os verdadeiros encontros deveriam legar ponderadas perguntas?
Em face da grandeza dos preparativos para mais esta visita do Papa, um velho «sem abrigo» andou uma boa meia hora a fazer a sua declaração de princípio. «O Papa deve empobrecer»

terça-feira, abril 06, 2010

A CONDENAÇÃO DO PASTOR PELO REBANHO


Esta história, que talvez contenha conteúdos de parábola extraídos dos terrores medievais, envolve a via atribulada de dois irmãos atirados de súbito para a orfandade, situação terrível e injusta que só podemos relacionar com os insondáveis desígnios de Deus. Só Ele, porventura, saberá dar sentido a esta trágica solidão das duas crianças, confrontadas com a morte súbita dos pais numa cheia dantesca. Só Ele poderá explicar a razão das escolhas, porque razão, ao mesmo tempo, se salvaram milhares de vidas, algures, do outro lado do Mundo.
Vivia-se uma época aterradora da limpeza moral intentada pela Santa Inmquisição, e as praças das cidades ou aldeias, com forte assiduidade, eram palco da execução de penas capitais, na morte pelo fogo, de gente condenada segundo códigos algo obscuros, atrás de denúnciais cruéis, muitas vezes presumivelmente falsas, actos de vingança ou perduráveis querelas. Tais condenações visavam criaturas tidas como bruxas, geralmente velhas, e homens ou mulheres acusados de actos impróprios, heresia, insulto aos símbolos sagrados, luxúria, entre outros.
Num casebre da aldeia de Clov, vivia uma família de camponeses, pai, mão e dois filhos. O mais pequeno não tinha ainda dois anos e o mais velho, sério, concentrado e responsável, rondava os sete anos. Era gente pobre, trabalhadora e honrada.
Tempo depois da morte dos pais, na casa sombria e húmida, viviam aquelas crianças, e tudo era tratado pelo moço mais velho, naturalmente, com alguns apoios dos vizinhos que moravam mais perto e sentiam compaixão por aquele destino. Não recolheram os miúdos para suas casas porque o mais velho, o José, nunca aceitara sair dali.
Certo dia, pela tardinha, um senhor da Igreja, vestindo de forma comum, que parecia ter grande vontade em ajudar os pobres e por isso escondia a sua origem, aproximou-se da casa das duas crianças orfãs, tendo conversado ternamente com o José e afagando as carnes e os cabelos do menino no seu canto acolhedor.
Dias depois, este mesmo senhor da Igreja, disfarçado de homem comum, voltou a visitar a casa das crianças, e chegou carregado de alguma comida e muitos doces. Afeiçoara-se aos orfãos, sobretudo pelo mais pequeno, a quem dispensava carinhos intensos, beijos longos, afagos insólitos, e até colocava o menino ao alto, sobre o seu peito descoberto, reclinando-se depois na cama, com ele, como a mãe fazia. O José, de início, olhava para tudo com grande enlevo, lavando louças e roupas, entre outras tarefas que o senhor por vezes lhe indicava, incluindo saídas para fazer compras longe dali. Foi nessa fase que o José, desconfiado, surpreendeu o homem todo nu, na cama, e com o menino enrolado no interior das suas pernas peludas. Foi posto na rua com um berro, voltando a casa quase ao anoitecer, com prudência, e logo correu ao ouvir o choro do irmão. O irmão encontrava-se meio vestido, sentado no chão, à sua frente um prato de papas entornadas nas roupas, apresentando os lábios em ferida.
Tempos depois, reposta a tranquilidade na sua casa e na vida do irmão, José deixou o menino na casa de uma vizinha, a cinco minutos dali, e foi assistir às matanças da Praça Maior. Queria espreitar e perceber tudo o que lhe diziam outros rapazes. E viu, assombrado, as fogueiras, ouviu os gritos, cheirou a carne queimada. Havia uma agitação contraditória em redor, carros chegando, guarnições militares, um palco com tecto, todo forrado em tom púrpura, e no qual, atrás de uma mesa longa, bispos, oficiais, juízes, todos se afadigando entre papéis, gestos, audições. Juntos, vistos de frente, até pareciam uma representação luxuosa da última ceia de Cristo. Ao olhá-los assim, frontalmente, o José, de repente aterrado, reconheceu num bispo da mesa o homem que lhe visitara a casa e que abusara do irmão. Era uma descoberta grave, o outro sentado no lugar de Cristo, conduzindo os trabalhos e bebendo goles de vinho. O bispo era, sem tirar nem por, o religioso sem farda que os invadira a casa da inocência e praticara as piores heresias.
José, atordoado com os fumos da carniça e aquela gente que já condenara um amigo dos seus pais, correu numa direcção aparentemente errada: queria falar com outro homem bom, mestre escola, que sempre dialogara com os pais e comia muitas vezes lá em casa, parecendo haver uma estranha cumplicidade entre todos. O encontro, depois da fala soluçada, era mais do que uma denúncia, era um acto desesperado de vingança ou de reconquista de uma dignidade ofendida. O professor soube rapidamente quem era aquele «santo» homem, o Bispo, Bispo Coordenador, Encomendador dos Processos em Curso. Foi longa e sombria esta história, pois os membros da Inquisição, quando eram acusados de terríveis delitos, acbavam sempre perdoados e por vezes nem os deslocavam daquele «campo de operações». Desta vez, houve uma diferença. Um dia, no final de horas de condenações e mortes na fogueira, apareceu um Cardeal, com pomposa comitiva, mostrando estranhar certas coisas e acabando por exigir a consulta de todos os documentos relativos aos processos. Perante uma tensão dos outros, ele puxou pela espada, colocou-a diante da face, e mostrou as insígnias que lhe conferiam aquela autoridade. Andava a mando do rei, como hoje andam alguns inspectores, pelas indústrias e comércios. Nunca se soube como, mas a verdade é que ele depressa descobriu o comportamento do bispo e as suas recentes luxúrias com uma criança de menos de dois anos. Houve uma reunião do «Senado» daquela divisão, onde se fez pública forma do acto enfim conhecido, e mais se propôs que a Igreja começasse a dar o exemplo: o juiz leu a decisão dos seus pares, condenando o bispo à morte pelo fogo, naquela mesma tarde.
O feitiço voltou-se contra o feiticeiro. Hoje nãoo acontecem tais cometimentos, até porque, desde o século XX, que todos os casos descobertos nas fileiras da Igreja andaram longos anos encobertos e a justiça demorava uma década para resolvar um simples caso de homicídio. Por vezes, alguns padres foram suspensos, convidados a sair, votados a penas de solidão, mais do que o Chefe religioso maior, Pai de todos, aquele que bondosamente costuma apresentar desculpas aos povos e sociedades lesadas por remotos crimes, entre famílias acabrunhadas, entre a fé e o horror. Há outras e muitas desculpas a apresentar, mesmo a título póstumo, está bem de ver, considerando civilizações arrasadas em nome de Cristo, as terríveis Cruzadas e de novo, de melhor forma, a própria Inquisição, ou os bloqueios grosseiros perante a ciência, de que Galileu é um exemplo da maior referência. Tudo isso, em boa verdade, serve de pouco. Mas os símbolos marcam muitos os actos desde bastante cedo. Convocar o espírito da Civilização e o próprio Deus para estes litúrgicos pedidos de desculpa talvez viesse iluminar um pouco a época, apesar dos segredos que vão sobrando nos subterrâneos da História.
***
O rebanho, nos nossos dias, não se basta com a fé do pastor e as
ovelhas são mais o símbolo da comunidade e da sobrevivência do
que gente empurrada para castigos sem explicão.

segunda-feira, março 08, 2010

ATRÁS DO FUMO, UM RETRATO SEM ESPELHO

começava assim:
Estou amarrado a uma cadeira, amarrado psiquicamente, fumando sem tirar o cigarro da boca. E a cinza cai sobre a roupa, desfaz-se em levíssimos flocos de nada, salpicando dessa forma a cor pardacenta das calças. A minha mão esquerda está pousada aí, por momentos incapaz de se mover: devagar e silenciosamente, coladas à pele, têm surgido, multiplicando-se, muitas margaridas da morte, essa espécie de sardas irregulares e por vezes assustadoramente grandes -- pétalas assim, de um sépia brando, para o dizer sem tanto alarme, um sinal da velhice que se aproxima de mim, figuras por vezes aguareladas na possível anunciação do colapso ou marcando o momento da vida em que somos mais sábios.
Há dois ou três anos, ao contrário da minha ausência nos espelhos, para onde olhava por vezes sem formar a percepção do meu rosto, começei a deter-me nos lugares onde esses misteriosos objectos me fitam, imobilizando a face e os olhos. Queria rodar os olhos e ter consciência visual disso, mas só dava por eles sempre parados, atrasada irremediavelmente a minha percepção de me apropriar, enfim, dessa imagem. Agora, como acontece com a pele das mãos, outros sinais e mudanças vieram alterar a identidade anterior deste rosto que eu espreitava num rápido reconhecimento. De frente para mim, o que vejo, surpreendido, é outra pessoa, é outra face, embora a experiência de dezenas de anos me diga que ninguém pode, neste instante, subtrair o retorno da minha imagem à consciência que consegue ainda reconhecer-me: cabelos escassos e oleosos, a testa cheia de rugas de medo ou de alegrias entretanto perdidas, os olhos infinitamente mais pequenos, rodeados de bolsas de pele e líquido, as pontas assimétricas das sobranelhas empeçadas. Manchas sanguíneas, por outro lado, vieram insinuar-se na face direita, já bochecha, onde cresce (desde a infância) um sinal enfim transformado em protuberância lisa, esférica e quase mole, rodeada de pelos que os instrumetos de rapar a barba mal tocam, deixando-os crescer como nas verrugas das bruxas. Os lábios ficaram finos, irradiando rugas a partir dos cantos, e se abro a boca mal descortino os dentes, recuados, pequenos, conservados com o apoio de coroas e próteses desse tipo.
Os desastres principais tanto nos arrasam por dentro e por fora, apagando grandes áreas da nossa memória, como toda a população deste continente, na faixa central, ao desaparecer, afogando cidades nos oceanos ou eixando velhos a morrer de fome, em Lares atulhados, porque os serviços sociais faliram e só os ricos ainda sobrevivem em jeito de velhos aristocratas fingindo fortunas com a venda das pratas e das jóias, cadeiras de estilo e móveis D. João V. No entanto, quando passeiam pelo jardim público, fidalgos a fingir, aparecem sempre impecavelmente vestidos, penteados, e com alguma corrente do século XIX pendurada entre o colete e a calças.
O meu irmão é um pouco como esta gente, e é velho exactamente, e finge a agilidade que já não tem. Foi para África há muitos anos, tantos que nem sei quantos, e entretanto, depois da população desse continente, na faixa central, ter desaparecido por completo, emigrando ou morrendo, fico a pensar nele, no irmão teimoso e apaixonado, de quem nunca mais recebi notícias, uma simplas carta, um recado trazido por alguém, como acontecia há muito tempo. Quando a tecnologia soçobrou, telefones, computadores, energia eléctrica, houve esta sensação entre membros da diáspora: uma ausência aterradora de sinais como no silêncio da morte.
Desprendo-me da cadeira, num esforço enorme. E deixo cair no cinzeiro a ponta queimada do cigarro, o filtro molhado de saliva, um cheiro levemente agressivo na ponta do nariz. Espreito para fora, para uma rua despovoada, que poderia perfeitamente acolher a poalha do meu cigarro.
E não vejo de facto ninguém, as pedras da calçada húmidas, o céu compacto e sombrio. Olho para a direita, para um lugar onde me abasteço de tabaco e outra bugigangas, jornais sonolentos ou continuamente intriguistas, simulando a verdade onde até os espelhos lhes mentiriam. A Matilda, dona da tabacaria, do poste de jornais, da venda de lotaria e revistas da TV, entre muitas outras coisasa irrepreensivelmente inúteis, parece estar recolhida, em os taipais fechados. Oxalá não esteja doente. Preciso dela e dos recados da filha, menina fútil mas que me trata como um avô, daqueles antigos que ajudavam a família e contavam histórias de maravilha.
Vou para dentro, encosto o vidro da janela e leio, impaciente, algumas linhas do que escrevi ontem:
Portanto a urgência de dizer. Dizer apesar dos limites, contra ou por dentro das convenções. Mesmo quando não se refazem, as convenções podem sobrepor-se ou misturar-se. Fernando Pessoa dizia imagens com palavras e usava as convenções, inteiras ou distorcidas, adequadas à forma expressiva de cada heterónimo, poetas diferentes que o habitavam, emergindo misteriosamente para a vida.
A globalidade e os desastres principais apenas nos lançam para um mundo cujo futuro que, parecendo tecnologicamente avançado, afinal se desenha cada vez mais nos termos de uma perspectiva redutora. Perplexo, rasgo alguns dos meus papéis. Acendo outro cigarro. Olho para a janela e penso: quefará a Matilda a esta hora?

texto e fotos de Rocha de Sousa, autor do blog


terça-feira, fevereiro 16, 2010

IMPOSITIVA IDENTIDADE DO FAZER PICTÓRICO

oração póstuma

Tomei agora conhecimento de uma série de cartas (textos de criação literária) que são actuais e de origem judaica. Imaginemos a edição de um livro cujos capítulos correspondem à urgência do homem se entender, de forma enfim consistente, com as divindades dos diversos polos religosos. Um dos capítulos integra uma carta dirigida por alguém sem identidade e que se dirige a Deus, com endereço em Jerusalém. Os outros capítulos são igalmente dirigidos a divindades de religiões activas e vastas na actualidade. Cada carta, dirigindo-se à divindade, abre-se a uma relação clara, explica-se com humildade e grandeza, mostrando-se depositária de importantes estruturas formais, supremas no seu valor literário. O texto, ou fala, ou prece, percorre o sentido da condição humana interligada ao perfil, poder e natureza da divindade. O humano que escreve mostra-se inquieto com o mundo em que vive, com a origem desse mundo e dele mesmo, ser falante, tendo por certos os propósitos superiores, inimagináveis, que terão sido encarados pela divindade como suportes da Sua obra, todo o Universo, as suas imagens e seres, os seus movimentos e massas animadas por milhares de forças, começando pelas gravitacionais, implicitamente aquelas que surgiram da enorme energia libertada no espaço, entre biliões de partículas, em choque e multiplicação, até às imensas concentrações de astros (explícitos) e outros corpos (invisíveis ou implícitos) cuja trajectória e formação de vida se encontram por toda uma infinidade de dimensões, sempre a fazer-se, a desdobrar-se, povoando-se de realidades biológicas, como a humana, nas quais a consciência se partilha com a razão, as emoções, a inteligência e a memória, sem limites palpáveis. Quem escreve vai colocando questões sobre a marcha da humanidade, dos seus ramos e crenças, em vastas manchas civilizacionais cuja história se afirma marcada por acontecimentos extraordinários, por obras eternizáveis, por tratados sobre a vida e a morte, entre guerras de difícil relato, ou genocídios, ou crimes e abatimentos os mais diversos. Quanto mais a carta se humaniza (objectiva) e trata do lugar dos homens e do seu apagamento depois da morte, cada texto torna-se comovente, como que feito de folhas meio secas que sobram pelo chão, imagem de qualidades iventadas pelo ser humano, talvez em partilha inominável com os poderes igualmente indizíveis de alguma consciência inserida no próprio universo. A utilidade disso inquieta as frases, a passagem e o vazio também, os cemitérios e grandes monumentos necrológicos relevando de todas as solidões no mundo, gente que migra, sobrevive, consolida família logo destinada à perda, ausências de sempre, presenças mitigadas e absurdas. Que farão os outros, amanhã, que destinos estão prometidos e são verdadeiros, para que servem, enfim, as partículas invisíveis em que se transformará, na morte local, o Sol, a Terra, o simples rosto desfocado de uma criança atravessada pela tempestade?

Quando passava na ponte sobre o rio, Senhor, toda a margem que os meus pés pisaram estava juncada de mortos, uma inteira paisagem de cadáveres, gente de todas as origens e raças, incluindo militares e sacerdotes, fragmentos de fragmentos, rios de sangue enchendo algumas clareiras ensombradas. Este braço que vem junto das minhas coisas parece ter pertencido a algum irmão do Norte de África, só é observável do ombro ao pulso, visto que a mão lhe foi decepada. Não sei se é devido e se o meu pensamento tem préstimo para quem me ouça, mas recomendei ao Senhor a minha prece de compaixão por este homem infinitamente sem nome nem corpo.

segunda-feira, fevereiro 01, 2010

OS SINAIS DE DEUS NO DESERTO ALENTEJANO

2009
abandono
Aqui acolho,
pelas analogias
de escolha estética,
fotografias registadas
no Alentejo
por um jovem arquitecto,
TIAGO DAMASCENO,
cujo olhar me
parece peculiar
amadurecidamente.












natureza morta
Primeiro porque se tratam
de fotos de um jovem
arquitecto por estes temas se faz
acompanhar de um talento
indesmentível,
sabendo como representar
o que vê.













berço
A mensagem
é comunicar a linha
de escolhas criteriosas na base de
temas sobre a vida e a morte
de gente cujo património fica
assim reduzido a estranhos
sinais de perda, abandono,
sinais de um destino sem sentido.












lareira
Fiz, não há muito tempo,
um exercício semelhante a este,
numa aldeia em ruinas na serra do Algarve.
Desta vez, Tiago, que vive e trabalha na África do Sul,
meteu-se por veredas alentejanos, numa das suas partes
mais desérticas e abandonadas, tendo encontrado esta casa
arruinada. Tema de que logo se apropriou como se o mundo
tivesse acabado.












escombros
Como no livro «A CULPA DE DEUS»,
dir-se-ia que Tiago julga ser aqui, após a morte e os
e os testemunhos de uma vida, um lugar apropriado
para procurar os obscuros sinais de Deus.
Perguntei-lhe se rinha encontrado alguma manifestação assim.
E ele disse: eu não, mas estude as fotografias,
pode ser que não seja em vão.
E não foi, de facto, em vão.
Porque os sinais do homem
superam os esquecimentos habituais
nestes casos.

quarta-feira, dezembro 23, 2009

PINTURA ARRANCADA AOS LIXOS URBANOS

pinturas de rocha de Sousa (2009)
desenho digital, seguido de técnica mista


Voltemos transitoriamente à pintura, aquela que se faz com matrizes digitais e se transforma, por diferentes meios directos e indirectos, em obra plástica mista sobre papel. As configurações podem não ter relevo estético muito apelativo e obrigar a leituras decifrantes, intermitentes, sem verdadeiro feed back. É um risco de todos os processos de comunicação pela imagem, mas é também uma conquista no campo expressivo, pluralmente liderada, segundo uma infinidade de projectos, de despojamentos, de apagamentos e recomeços. No meu entendimento, todo o ruído do experimentalismo ao longo do século XX, deixou marcas, sequelas, suicídios consumados. Nenhuma batalha se faz sem feridos ou mortos. Por este caminho demoradamente em catarse, os gritos e os silêncios haveriam de deixar impressivos efeitos sobre a evolução dos modos de formar ou os segredos dos grandes mestres da Renascença, para não citar outros, de outros tempos, de civilizações mais recuadas. A arte foi submetida, pela vontade sensível e pelos fenómenos do registo mecânico, a uma reflexão sobre a sua verdadeira natureza, possível autonomia, se estava ou não largamente infectada pelas indumentárias, riquezas de habitat, projecção de ornamentos, efabulações do ver e do delírio. Pelas conclusões das análises intensas e radicais, depressa se argumentaram os caminhos da simplificação, despojamento, limpeza do acessório. O princípio parecia legítimo. Mas não absoluto. E, com efeito, mal se chegou ao minimalismo da linha solitária sobre a tela ou do corte desesperado, num só golpe, ao centro da própria tela, acto liminar de Fontana, logo a moda subverteu o modo. Mas o homem não é simples, nem por fora nem por dentro.
Ele cumulou em si mesmo milhares de finas orientações, desejos e sonhos, todo um corpo, hipoteticamente belo, que se deformou com o seu destino perecível, interrogado por pincéis perversos ou lúcidos como os de Bacon, Goya, Soutine, Munch, entre muitos outros e até aos exorcistas que se serviram das máscaras africanas.
Quando a última depuração esvaziou a tela, sugerindo um ponto final de difícil inversão de marcha, o milagre aconteceu, os homens reivindicaram a riqueza do seu elemento cultural: e, embora não recuperassem os panejamentos do barroco, as distorções do expressionismo, utilizaram de novo os pincéis e os pigmentos, sem perder de vista novas ferramentos, como a fotografia e a informática. O Hiperrealismo, disseram alguns, foi um episódio sem importância nem verdadeira profundidade ou questionação. Mas, como sempre se tem verificado, não é bem assim: os hiperrealistas colocaram-se à frente e atrás dos realismos de cunho expressionista, e o gosto pela pintura em si, de novo comprometida, foi reaparecendo um pouco por toda a parte, a retomar caminhos já trilhados: pintar exigia outra vez uma paixão avassaladora, cujos impulsos se carregavam do sentido do métier, em certos instantes convocando as escritas da inocência ou da infância. O acto de representar, mais ou menos artilhado com novas próteses, voltou a inundar os espaços onde a pintura se pensa, expõe e se manifesta. E a verdade, apesar de algumas excepções alucinantes, as técnicas, apoiadas ou não, mostram agora o prazer de todos os recomeços. E as formas ressuscitaram para esse domínio pujante com o seu carregamento de garatujas e olhares de Rembrant. As duas coisas passaram a poder coexistir no mesmo espaço. O nosso desejo de visitação de todas essas manifestações permite-nos vereficar a mutação das figuras, justamente porque, entre o dom reconquistado da escrita primitiva, cada vez mais as telas estão povoadas de muitas coisas vindas do real ou da infância, óbvias, enigmáticas, ou anunciadoras do futuro. Podemos assinalar, num caso, «esta figura corresponde ao número 3». Depois não sei: «talvez certos círculos me lembrem os bonecos do meu filho, quando era muito menino. E ali, à direita, reconheço um bicho rastejante, visto de cima, e certamente uma velha casa, de madeira, meio arruinada. Então poderei deduzir vários tipos de lixo, talvez voando, à esquerda, uns após os outros, como fotogramas de um filme amador em Nova Orleães.

terça-feira, dezembro 15, 2009

TRANSPARÊNCIAS DE UM AMOR SEM NOME

cartilagens transparentes na oficina desarrumada
Rocha de Sousa


As coisas aparecem assim, como nas casas dos espíritos, um pouco sem nexo, mas batendo certo no chão de cimento, conforme o alfabeto. Quer dizer o seu nome marcando primeiro letra a letra? Uma pancada sim, duas pancadas não. (Ouve-se uma pancada.) É sim. Vamos: A, B, C, D, E, F, pancada. Vamos confirmar para F. Uma pancada sim. (pausa. Ouve-se uma pancada.) A primeira letra do nome é um F. Alguém se lembra de um familiar ou amigo com um nome começado pela letra F? (Digo eu, então) Fui, durante muitos anos, amigo e cliente de uma pessoa cujo nome começava por F. (Pausa) Quer dizer o nome? Frederico. Pensamos que a pessoa que nos visita é o Frederico. Vou usar os meios: Se o seu nome é Frederico, use apenas uma pancada. Se for apenas uma pancada, estaremos na presença do senhor Frederico. Concentremo-nos. Uma pancada para confirmar a presença do senhor Frederico. Ouve-se uma pancada forte.

Era ele, num dia sombrio mas sem chuva. Chegara pelas oito horas e ficara, como sempre, a descansar um pouco, dormitando sobre o volante do carro, já estacionado muito perto da oficina. Por volta das nove horas, quando era mais provável entrarem os primeiros mecânicos, dois deles estranharam a oficina ainda não estar aberta. Trocaram impressões sobre o facto, e um dos rapazes achou que o Frederico estava atrasado, nada mais, por isso deviam abrir a oficina e retomar a rotina. Um hora mais tarde, o Frederico não aparcera. De casa, para onde telefonaram, a mulher confirmou que o marido saira como habitualmente, cerca de vinte minutos antes das oito. Os homens entreolharam-se, foram até à porta, e poucos instantes depois descobriram o carro, quase à esquina, reparando que o Frederico estava aconchegado ao volante, como fazia habitualmente, para descansar um pouco antes de fazer a abertura. Foram lá, bateram no vidro, para acordar o patrão, mas ele continuou na mesma posição. Abanaram o carro, uma, duas, mais vezes e já atormentados. Nessa última tentativa, o corpo do senhor Frederico escorregou para a esquerda e eles viram e sentiram claramente como a cabeça do patrão e amigo tombara para a esquerda, batendo no vidro. Não estava a dormir. Foram buscar a chave de reserva e abriram a viatura, procurando agarrar logo o corpo do amigo, corpo lasso, rosto pálido e frio, corpo logo nas mãos dos homens e um grito para telefonarem para o 112. Estava morto e os meios de apoio à vida limitaram-se a confirmar esse facto e a guardarem o corpo numa lona apropriada. O que mais espantou a rapaziada e os vizinhos foi a decisão dos serviços de auxílio abandonarem o corpo ali, dizendo que não devia ser removido por ninguém antes da chegada do delegado de saúde. Por ali se conversou, lembranças comovidas de um homem ainda novo, honesto, trabalhador, que geria a oficina como uma cooperativa bem fraternal. Grande conheceor das mecânicas de vários tipos de carro, os seus diagnósticos eram infalíveis.
Quando, dias depois, entrei na oficina, conheci a filha do Frederico, dinâmica, pronta, já a gerir o negócio tanto quanto possível segundo o critério do pai. Das imagens que trouxe para aqui, só uma é pintura de pequeno formado, feita a guacho no interior da oficina, apontamento sem força nem brilho, embora capaz de sugerir a atmosfera daquela cave. Andei por lá, fascinado como nunca, a tirar fotografias de certos pontos ou postos de trabalho, tudo numa tontura de coisas sobrepostas, ainda por arrumar, roldanas, elevadores, vidros foscos entre faixas para operações mais delicadas, um batimento ao fundo, imagens trémulas, uma fotografia sobre a anterior na primeira máquina que tivera, comprada em Angola, e cuja passagem manual do filme, parando com um estalido, permitia enganar as normais funções da cadeia de janelas, fotografando assim, coisas sobre coisas, sombras, luz artificial de mistura com a que vinha do portão e das janelas altas - e assim o voltei a fazer anos mais tarde, a sério, em nome da arte e do ausente/presente Frederico.
Frederico, lemras-te do meu primeiro carro, um austim 850? Deixaram-te abandonado na rua e ali estiveste à espera de uma palavra da nossa parte, capaz de explicar o que o tempo faz às coisas e às pessoas. O tempo não apaga as imagens, nem os afectos, nem os actos solidários. Só a morte apaga tudo isso, todas as nossas horas, a nossa arte, os nossos amores. Impunemente e sem a menor utilidade.

terça-feira, novembro 24, 2009

FEIRAS DE ARTE E BRINQUEDOS NÓMADOS

fotografias de Rocha de Sousa

Ontem fiz referência a um texto de Hugo Canoilas sobre a exposição «Atravessando Fronteiras», dedicada aos anos setenta e promovida pelo Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian. Hoje, ainda perante um outro texto do mesmo autor («Vem aí a Feira») passo para este espaço, acompanhado de imagens de vários feirantes que registei num grande evento no Algarve. Vou assim citar amplamente Hugo Canoilas, a bem de uma importante causa que envolve a arte actual portuguesa e a submete de forma tosca a mimetismos de olhos desvairados vindos da Alemanha ou de Espanha, visitantes de consumadas feiras de arte, a primeira das quais sucedeu em 1970, Colónia, vítima de grande contestação por artistas como Wostell ou Joseph Beuys. Segundo o articulista aqui evocado, aqueles e outros autores sentiam que a «feira» era um caso de «constrangimento criativo e de práticas de exclusão injustas». Tal sentimento parecia, diziam eles, «trazido por esta moda», apesar dessa espécie de bolsa das artes revelar a abertura de maior número de galerias na Alemanha. Apesar dos «poços de ar» verificados noutras circunstâncias, esta febre afinal mercantilista fez alargar imenso o número de galerias entre os anos 60 e os meados dos anos 70: apenas 400 espaços, grande variedade de produtos como é próprio de qualquer feira que se preze. Haverá nesta realidade um factor socializante em termos de distribuição, o que, na altura, se ligava a algumas propostas mais conservadoras e, naturalmente, a um grande aumento dos valores de mercado. Hugo Canoilas acentua, a propósito da natureza de certas tipologias de algumas vertentes artísticas, o curioso facto de autores como Blinky Palermo e Gerhard Richter «serem absolutamente pró mercado em reacção às práticas conceptuais vigentes (quando a arte conceptual era no início não mercantilizável)». Vivia-se entretanto a ideia envolvente (que alguém espreitava da margem da história) de que estes eventos talvez permitissem manusear trabalhos, negociar com com artistas e marchands, tendo em conta igualmente a conhecida sensibilidade dos clientes e o seu modo de comprar. Agitando produtos e lugares, ainda se pensou que a feira poderia alcançar um importante significado para os homens do ofício (artistas e vendedores a retalho). Perante a actual Feira de Lisboa, Hugo pergunta-se com pertinência: Será que, em Portugal, ainda não se aperceberam que este modelo de feira é um «nado morto»? É, com efeito, problemático este alinhamento (pobre) por exemplos exteriores que já mudaram de figurino, apelando à inscrição da cultura e contra a menoridade dos objectos. Se as galerias investem muito dinheiro na apresentação da feira, o certo é que o nível da visibilidade alcançada não escapa ao ruído envolvente, aos equívocos de bem parecer, à cedência ao público arreigado e aos imperativos dos habituais ou duros coleccionadores. De resto, procurando estratégias «adequadas» para este tipo de acontecimento, ao certo quase nada interdisciplinar, os galeristas ensombram a desejada «celebração da arte contemporânea», o que deveria convocar ambientes festivos, o gosto pelo debate sobre o papel da arte no mundo de hoje, inclusivé envolvendo todos os agentes (artistas, galeristas, coleccionadores e público) numa frutuosa troca de ideias, entre saudáveis polémicas e possíveis consensos. Com leituras também, a relação do livro, da sua linguagem perante outras de suportes e factores integrantes diferentes. E como o verdadeiro cinema faz falta nestes casos, mesmo que para tanto as barracas tivessem que fechar os varandins, deixando ao relento os dados físicos de algum marketing..Hugo Canoilas diz ter verificado que a feira de Amsterdão, ao comemorar os seus 25 anos, solicitou a todas as galerias a apresentação de exposições individuais, facto que aconteceu e conferiu um novo interesse às acções correntes. «Foi de facto - diz ele - uma das melhores feiras que vi»; em experiências assim ganha a vontade de participar e os termos de legibilidade. Há outros exemplos de outras soluções, como em Viena e o convite a autores de Leste cuja produção, espectro de dados inovadores, grangeou um entusiástico interesse do público. Viena vai mais longe, convida curadores de prestígio, uma classe que parece seguir o antigo caminho da crítica - o de se substituir aos próprios artistas, gerindo mediatizações e deploráveis ostracismos. Um dia, estou certo disso, este poder institucional, protegido nas respectivas instâncias, terá de ser melhor enquadrado e trabalhar com outro espírito. A arte, esquiva a dogmas e decisões absolutistas, ela sim, ela é que faz a sua verdadeira história.


Cito de novo, ao correr das palavras, um trecho de Hugo Canoilas (e ele que me perdoe trazer para aqui vários inserts da minha visão deste assunto, melhor: deste tema por debater: «Existe também um divórcio entre as instituições portuguesas e a feira. O que torna tudo mais amador e de menor qualidade.» As galerias e aquelas entidades acolhem entre si as incertezas e a responsabilidade pela débil proliferação da arte portuguesa na sociedade. «Não se compram espaços nas revistas, patrocinando mas também divulgando actividades e transformações neste domínio. Não existe aliás qualquer tipo de estratégia para colocar definitivamente os termos Arte Conteporânea na própria língua portuguesa, como tem acontecido com o Design e a Moda. A arte praticamente não chega à televisão; ou, quando chega, aparece mediada. Chega sempre em segunda mão.» A verdade, digo eu, é que a lógica mercantil das televisões atingiu proporções verdadeiramente absurdas, acentuadas, aliás, pela manipulação do público através de formas de espectáculo indescritíveis, todos os canais vestidos de igual à mesma hora. De quando em quando, anos talvez, lá vem uma espécie de «curador» curar de um artista já assado e condimentado. Excepções só no erudito «Câmara Clara» (bem longo) e no «debate» futebolístico (bem mais longo). Há quem diga que é melhor assim, pois uma acção em terreno movediço sai fora dos padrões de audiêncicai e vai cair nos mesmos, sem risco nem contraditório. E no entanto era perfeitamente exeqível (competitivo, como dizem) um programa sobre várias artes, cada bloco de 50 minutos proposto por um agente cultural de interesse reconhecido por uma comissão prévia. Augusto França pode seguir-se a Leonel Moura, Paula Rego tratada por Rui Mário Gonçalves, Nuno Portas dissecando a obra em geral de Siza Vieira. Nada disto tinha de ser curado por curadores. Temos muita gente bem apetrechada para dirigir e orientar projectos assim. Vai sendo tempo de pensar a alma do país e a moodernidade que nele se gerou para além das chamadas «imagens convenientes». Os artistas que ganham o primeiro galão (mesmo só como alferes) tendem a ligar-se a diferentes tutores, tribos, lobbies, garantindo a sua colher de sucesso nacional e internacional. As encomendas que venham, eles não as procuram. Por isso abominam associar-se, criar organismos representativos deles: isso dá trabalho e obriga a compromissos rapidamente queimáveis pela inveja latente no burgo. Talvez por isso é que eu fui obrigado a ouvir o membro de um governo provisório, quando se instituía a Faculdade de Belas Artes da U.L., que a nossa pretensão era fútil e sem fundamento: «o país não precisa de artistas», disse o homem, um pé institucional sobre a onteria do 25 de Abril.

Na feira que visitei, colocando-a ao lado de de Lisboa, os brinquedos de madeira fecham uma sala. E não posso deixar de me lembrar que um artista português usou, nos anos 70, este brinquedo do pássaro com rodas e cabo em grande quantidade de uma amável e repousante instalação.

os velhos brinquedos de uma geração ainda não perdida

terça-feira, novembro 10, 2009

TRANSPARÊNCIA E UM RELÓGIO DE HORAS



Água verde mas límpida.
Translúcido espelho amarrado
ao muro de pedra já ferida.
Velho espelho em casa da avó,
tão velho como o relógio centenário
preso à parede, rachado e só,
sempre a bater as horas
sobre um obtuso relicário
no qual se eflectia
o arrastado ranger da corda,
essa espécie de coração
cujo rumor de concavidade
se faz sentir no quarto exíguo
pelo frio de pedra
ou pelo circular rigor do tempo

sábado, outubro 31, 2009

PRESENÇA E APARÊNCIA NA FORMA DO VISÍVEL


pintura | técnica híbrida | rocha de sousa

Achei aquela frase num simples livro de Educação Visual. Acharia outro, se tivesse vontade para procurar, entre as imagens quotidianas da metamorfose do mundo: gente e coisas, o lixo disfarçado no desvão dos cafés ou das vielas irreparáveis. O livro era pequeno, pouco ilustrado, falando de Kandinsky e Paul Klee, como não podia deixar de ser. Os exercícios de pintura de Paul Klee pareciam lições práticas, sustentadas no olhar, ensinavam entretanto a ver a ordem das formas e das cores no espaço, os valores, os ritmos, a textura de uma simples mancha aguada. Em certo sentido, era quase tudo o que havia para aprender, começando no ponto e na linha e na sua diversa multiplicação. Do visível até à pintura que dele em parte se apropria vai uma grande distância, mesmo quando não parece: quando, por exemplo, os olhos de um retrato realista destilam lágrimas ou alguma viscosidade emergente. Coloquei este pequeno trabalho aqui, sustentado por meios electrónicos, mais como uma espécie de electrocardiograma, folha de registo, linhas e fundos, formas e figuras, desenho do que me faz pulsar, qual o estado em que se encontra a minha capacidade de ordenar a desordem, de chamar imagem ao real transformado, a um espaço sobrecarregado, em suma, de sucata inominável. Vou e venho, vejo as marcas consistentes e embrulhadas nesta maneira de ver as coisas. E penso sempre: talvez fosse bom que uma anunciação deste tipo se fizesse a cru, breve e secamente, aberta em pontos, duas linhas, a mancha do mar ou a imitação esboçada de três pequenas nuvens. Mas eu gosto de adjectivar, não sei porquê. O problema pode estar na própria língua, atrás de semânticas austeras, em textos exemplares e sintéticos. Na pintura as coisas seguem também, por outro lado, o bater do coração, o deslizamento das tintas, riscos reais e virtuais, dores de quem não chega ao ponto exemplar com que sonhava, fechando-se como um bicho de conta, a espreitar milagrosamente a primeira figura do que deveria ser uma multidão, os crentes gemendo passos circulares em Meca, os peregrinos amontoados em Fátima, pés a sangrar, iguais aos de todas as batalhas, e a praça do Vaticano coalhada de cabeças, só cabeças e sobretudo escuras, pontos brancos aqui e além, o marulhar das ondas distorcido à escala tímbrica das rezas e das canções menos ásperas que se ouvem nos grandes espaços do espectáculo de massas. Não era disso que eu queria falar aqui. Queria apenas lembrar, pela suave sabedoria de Klee, que todas as vertentes da sua geometria plástica podem ganhar outra configuração, perdendo a transparência em nome da opacidade fracturada, fósseis aqui e além, ferros, peças sem contexto, armadilha de asas pela frente de uma atmosfera em azul forte, nenhum realismo na realidade alcançada, porventura legível aqui e além, presumível como resto, espaço onírico, reinventável através da análise ou do sonho, verdadeira porque sim, operática também, pânica igualmente, algo daquilo que sou em mim e nos outros, vazio às dez horas da noite. De madrugada a mesma coisa será diferente. E haverá no céu três pequenas nuvens.

terça-feira, outubro 27, 2009

A DEVASTAÇÃO DO IMOBILIÁRIO QUALIFICADO


Aqui ficam para memória futura os primeiros sinais de devastação de um prédio urbano das primeiras décadas do século XX, recoberto de azulejos, cerâmica de muito boa qualidade estética e funcional. Foram longos anos de ataque a esta fachada, zelo para hecatombes sociais, icrementado a partir da altura em que um velho chefe de família, rodeado pela mulher, duas filhas e um filho de maior idade, sucumbiu inesperadamente. Vieram outros anos, outros ventos, uma das filhas morreu ao arrepio do destino e a senhora viúva ponderava como gerir a cada vez mais dramática ausência de meios. Havia gente nas águas furtados, creio que um casal jovem e uma avó vigilante, recortada por vezes nas janelinhas alcandoradas, simultaneamente devolvida da sombra pelo seu reflexo num espelho ao fundo. No piso junto à rua, à direita, nunca percebi quem aí habitava: porque, embora as janelas estivessem tratadas e com cortinados de renda, ficavam sempre fechadas. Percebi uma vez que havia lá alguém, porque estava perto e o carteiro bateu para lá e esperou muito tempo. Depois, no vão da escada, foi um murmúrio surdo e uma tosse rápida. De resto, o lado esquerdo esteve quase sempre ocupado por uma loja de ferragens, à qual se seguiram lojas de artesanato e biscatos em papelão, colagens, animais afectuosos, de cartolina, para meninos da escola.
Em cima, a desertificação começou pelo uso que o filho mais velho da família destroçada foi dando aos quartos, sala e saletas, um quintal que nunca vi, com ramagens de aguarela. O ataque continuava, nenhuma classificação fora conseguida, ou critério de bem público (que o era) e muito menos quando a avó das águas furtadas morreu, dias no quarto, depois um funeral esquisito, acompanhado por gente jovem, mal vestida, duas moças magras, crianças recentes, de olhares já indiferentes e breves.
Tudo pronto: os homens dos papéis e da ganância lá conseguiram a licença de demolição. Nem uma meia dúzia de azulejos, para amostra, sobrou da insanidade vandalizante. Deitar abaixo é uma coisa. Arrasar a arte e a nobreza dos adereços é outra. Ninguém veio ao funeral da amável moradia que conheci durante quarenta anos. Vim eu, olhando da minha própria janela.
As duas imagens seguintes, muito belas à sua maneira, corresponem ao fundo da casa, já esburacado até às traseiras da garagem da outra rua. Oiço as miúdas de antigamente e lembro-me do senhor de cabelos brancos e olhos claros mas avermelhados. A menina mais nova, magríssima, a comer um gelado. E o gato. E aquela moça angular, de camisola sem mangas, que aparecia na janelinha direita, assente no telhado. Costumava passar discos dos Ping Floy e cuidava de um cato arrumado no canto do pequeno varandim.
Nunca mais recebi sinais dali, da menina e do rapaz, da mãe dele que acabara por casar com um engenheiro civil, longe daqui. Mas quem sabe da folha de serviços do engenheiro?



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Máquina trituradora, ficção na sua forma e no seu roncar. Racha tudo, parte, arrasta para a direita e para a esquerda, entulho a sobrar. Quando vem a noite, o braço de ferro tomba. O monstro acomoda-se, silencioso, sobre o entulho. Dorme.














Janelas partidas, vidros estilhaçados, uma geometria suspensa, abanando em melancolia e já no patamar do desaparecimento. Há muitas inexistências entre as novas velhas existências que fazem chão sobre o chão desaparecido.













A pata da máquina sobre os destroços. Nem o menor sinal da história humana aqui contada. Nem um simples resto de livros, cadernos, uma jarra partida. Madeiramentos soltos, já sem origem e de destino eventualmente incerto. Os homens não sabem como crescer, porventura como olhar cada paisagem devastada, coisas e espaços que podiam ser futuro de outra morte.

segunda-feira, outubro 12, 2009

ORFANDADES E SOLIDÕES, O DESERTO


Donde vieste? De longe, da Fragura, é da praça que a gente vive. Vives como, assim, e os teus pais? Já se foram, o pó de pedra deu cabo deles. Mas vives sozinha? Não, nada disso, cuido das minhas irmãs e trato da casa e arranjo a terra. Duas irmãs? Sim, a Esmeralda, que é bem mais, nova do que eu, e a Bendita, fez há pouco dez anos. Vão à escola, as tuas irmãs? E tu? Só a Bandita é que anda na primária, vai de manhã cedo e volta pela tardinha. Ainda nos ajuda um pouco, mas tem de fazer as contas e as letras, adivinhar coisas. E ela tem transporte para a escola? Ainda houve tempo que usámos o burro até meio caminho. Mas no Inverno ainda era pior e o burro, coitado, acabou por morrer. Ela vai assim, a pé, tem umas botas de borracha, roupa, o chapéu de chuva que era do meu avô. Já se habituou e gosta de professora. São muitos alunos? Já foram, já foram. Agora são onze e por isso não acabaram com a escola, como no Carrascal ou na Azinheira de Baixo. E tu, tu nunca estudaste? Aprendi a ler enquanto o meu avô foi vivo, ele tinha a quarta classe e gostava de ler jornais, mesmo atrasados, e havia um que era da freguesia, todo sobre as sementeiras, o estado das terras, os mortos. E a Esmeralda? Essa não tem nada, não pode, nasceu com pouco tino, com os olhos em bico. Mas é boa menina e sabe limpar, lavar, ajudar na cozinha. Então tu é que fazes o papel de mãe? Papel não, mãe tal e qual. As minhas irmãs precisam de mim. E têm que ser orientadas nas coisas, na rega, no cuidado com o transporte da água, na comida. A Esmeralda sabe os caminhos aqui em volta, os mais próximos, e vai buscar pão ao Forno do senhor Estorninho. Ele é nosso amigo. Por causa dele é que temos galinhas e sabemos de outros amanhos. Que é que tu estás roendo? Não sou rato, isto é oferecido pelo senhor Estorninho, parecem bolachas, pãezinhos, algum chouriço, é um grande amigo. Já levou a minha irmã Bendita ao médico, na Azinheira de Cima. E aonde arranjam dinheiro para o sustento? Pois então, como há-de ser, é das coisas que tiramos da terra e vendemos aqui, os ovos, alguns serviços que nos pedem, e de uma pensão que os senhores da Segurança Social nos mandam. É pouco, mas é o que resta da doença do pó que matou os nossos pais. E afinal tu, não me disseste o teu nome. Eu sou a Esperança.