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quinta-feira, março 17, 2011

POR UM LIVRO QUE SE ENCOBRE A SI MESMO

Este é um livro de desencanto

Palavras convocadas pela autora deste livro e com quem mantenho uma correspondência de reflexão e partilha de experiências, assim mesmo, num longo encontro que se tem mantido sempre no espaço virtual de uma distância carregada de viagens imaginárias, cada um de nós fazendo o impossível puzzle de nos conhecermos sem nos olharmos face a face. É um caso de reflexão. E a leitura desta obra fez-me sonhar com espaços e nostalgias que tantas vezes me assaltaram quando estive em Angola, numa guerra destituída da verdadeira história e à qual dediquei um livro. O afecto que partilhamos tem uma parte da sua natureza nesta revelação de um ao outro, contemprâneos e desconhecidos, fábula entretanto desenvolvida na obra escrita de cada um de nós. Todos os meus livros destes últimos têm sido lidos e avaliados pela Jawaa, uma voz certa e melódica tanto no seu blog como na passagem pelo sentido daquilo que escrevo, artigos, textos para livros, livros e ilustrações, memória da pintura que fui fazendo e através da qual trocamos opiniões sobre o mundo, o homem, a consistência ou inconsistência do ser.
Iria Augusta Cardoso é uma daquelas pessoas que se viram forçadas a abandonar Angola, em Setembro de 1975, na ponte aérea pela qual se garantiu o transporte de milhares de potugueses de Luanda para Lisboa.
Escrevi algumas linhas sobre o livro «Memória do Esquecimento» na impossibilidade de ir ao seu lançamento. Olhei muitas vezes para este desenho a cores, uma memória de outras narrações, fruto sensível e conceptual de alguns trechos que Iria me concedeu sobre a sua vida em Angola. O livro tinha sido terminado e eu, num repentismo encantatório, desenhei digitalmente aquela imagem, tanto quanto poderia parecer-se com a outra, com a verdadeira, e porventura numa África menos azul e mais baça pela humidade no ar quente, atrás de florestas e anharas, bichos supostos que assumem o mito, pois a pureza e a secularidade das famílias passa mais pelos pássaros, plantas, flores, borboletas, lentos rios a perder-se no horizonte.
«Se o tempo é o nosso pior inimigo, frase bem conhecida de Albert Camus, talvez se possa compreender melhor como qualquer esquecimento só acontece ao certo quando nos for possível ou inevitável dissipar partes da memória, ou toda ela. Mas, tanto quanto podemos avaliar, os acontecimentos narrados neste livro situam-se num tempo e num espaço onde, além da memória do real, há também, ou sobretudo, referências a factos verdadeiros.
A beleza desta obra, a sua força poética e a memória dos próprios sonhos, vogam acima dos espaços, por cima do mundo, resulta de olhares que olham aqui e além, e nos traduzem a voz interior de uma espécie de omnisciência narração sem contornos aritméticos, ou lógicos, ou sequenciais.
Os factos, as imagens, podem esfumar-se mas não perdem, contudo, o contorno da verdade. Nem eles se apagam na sua condição histórica, passando apaziguadoramente à condição de perda, nem as eventuais fracturas de algumas cenas já brancas impedem a nossa travessia pelo sentido das coisas e dos seres.
do amigo, outra vez, João Rocha de Sousa

quinta-feira, fevereiro 17, 2011

QUANDO DEUS USA A EUTANÁSIA EM SOLIDÃO

oito anos de morte em profunda solidão
O país dorme no cansaço da crise. Como já envelhecera em famílias ordeiras sob o eufemístico rigor de Salazar. A morte era tratada em litúrgica beleza, triste ou trágica, por famílias que acompanhavam as floridas encenações em horas de espera ou marcha, velando os defuntos como se ainda estivessem dormindo, daí a pouco prontos para uma espécie de ressurreição pacificante. Os velhos morriam a tempo e horas, após os últimos martírios, por vezes inconscientes sob os efeitos da morfina, aplicada sempre que possível e aconselhável, líquido administrado no instante mais terminal de todos, ou na espera dura, derradeira, para que o fim concreto do acamado pudesse depender apenas da decisão divina.
Com o avanço da medicina e a ordem pública do Serviço Nacional de Saúde, os idosos tornaram-se cada vez mais velhos, embora alguns ganhem o benefício de passar os cem anos, juntando a memória do tempo monárquico aos ventos da República, ao 25 de Abril e a estranhas inovações entre as escolas e os hospitais, entre as finanças e as esmolas do Estado aos mais deprimidos.
Mas há bons sinais que antecedem as marcas da perda, crises nacionais e internacionais, entre as tinyas sujas mas niveladoras da globalização, algo que um dia acabará com os países, as histórias, as culturas, apenas para dar forma a um enorme bingo, sem rosto nem identidade verdadeira.
E falando nocamente em sinais, devemos reflectir o mais possível nos mortos solitários, casos de outrora mas também, impensavelmente, de agora, achados aqui e além, por vezes nove anos depois de se haver partido o fio da vida. Quem é esta gente? Que anunciação pode atingir-nos desta maneira, ao lado das estradas e dos carros de luxo, das cidades atulhadas, das emigrações aterradoras, reinventando por mar aquelas, nos anos 60, as que os portugueses assumiam a salto, sonretudo para França. Alguns morriam por lá, mas não, apesar de tudo, ao abandono. E deixavam em Portugal uma casa de bonecas, todas parecidas umas com as outras, simbiose de culturas, o gado recolhido em baixo, a escada exterior, a ben-aventurança no piso superior.
Na fotografia aqui inserida, em baixo e depois de um corpo morto (pintura), corpo descomposto de uma pobre avó sem pertences nem filhos nem netos.

lugar e apoio aos solitários idosos foto de Adriano Miranda

Um jornalista sádico legendou a fotografia, na base de uma citação institucional, esta frase: o ideal é que os idosos se mantenham no seu ambiente, desde que acompanhados por estruturas de apoio. É como falar na defesa do inquietante património destes fantasmas. Alguns responsáveis desta área da organização social falam de idosos que se encontram autónomos e a viver nas suas casas, tristes e sós. Perto de 40% dos idosos sobrevivem nessa condição um resto de vida, em casa, com mais de 65 anos de idade e auito-sequestrados (ou doentes) durante mais de oito horas por dia, admitindo, em certos momentos e de viva voz, que se sentem todo o tempo tristes e deprimidos.
Villaverde Cabral, do Instituto de Envelhecimento da Universidade de Lisboa, fala da «urgência» (talvez uma urgência imanente que vai escapando cada vez mais aos gritos mutilados do género humano) e aponta a necessidade de meios e métodos para amparar este fenómeno.
«É pena que tenha de haver casos trágicos como este para que a opinião pública tome consciência do problema cada vez mais frequente do isolamento em que vive uma grande parte dos idosos.»
O Sistema, ao contrário, é que criou condições geradoras do mo do como estas mortes acontecem. Porque os vizinhos (opinião pública) sempre e depressa ajudaram os lugares habitados e a narrativa da vida não acontecia apenas e por acaso na televisão. A solidão que leva a estas mortes sem qualquer chamamento é o ramo perverso do abandono sistemático das pessoas sem meios que talvez se entreguem, exangues, ao último prato de fome. Lá fora, depois do deserto do país, saltita a cultura meridional do consumo e do crescimento. Qual crescimento. Que indecência é essa de imaginar tampões da apoio antes que os cães desatem a correr pelos quintais e venham devorar os próprios humanos seus companheiros?
Fechem depressa as catedrais do consumo, em papelão e publicidade interminável. Visitem os que não precisam de prémios nem de descontos.
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Entre as notícias sobre este assunto, destam-se seis casos de descobertas de pessoas mortas em casa, sozinhas, algumas («desaparecidas») há muito tempo. Augusta Martins, 95 anos, Rinchoa, Sintra, foi encontrada morta após 9 anos. Em Matosinhos, um homem morto assim, só foi encontrado após instantes protestos dos vizinhos. Cantanhede: um reformado do Exército, 71 anos, esteve morto, durante três meses, em casa. Amadora: Ex.PSP, Ernesto Henriques. esteve morto em casa dez dias. Ourém: Corpo de homem de 67 anos encontrado em Ourém. O laconismo da notícia começa a ser significativo. Faro: Um homem de 65 anos morreu sozinho na sua habitação.
Quantos mais casos haverá por este país fora, fruto de uma sociedade onde ascmunidades se desfizeram e a pressa de antecipar o futuro conduz as pessoas a comportamentos alucinatórios e a esquecimentos como estes. Há sítios onde muitas portas fechadas desde há anos, habitação de vizinhos que foram perdendo o rosto, vão certamente ser abertas com mais frequência. É que uma decente organização civilista pode passar a encontrar, em casas e lugares, mais vivos do que mortos.

segunda-feira, janeiro 31, 2011

A PARTILHAR COM NOZOLINO UM VER DORIDO



fotografias de Paulo Nozolino

Tocado pela excelente entrevista de Clara Ferreira Alves ao fotógrafo português Paulo Nozolino, revendo alguns nocturnos de minha autoria, fiquei submetido a esta escrita da imagem fixa e sabendo, mais uma vez, que tudo isto se desmorona com a indiferença geral e as soluções recreativas proliferando um pouco por toda a parte, forma de abortar todos os renascimentos da lucidez e do gosto, banalizando às liturgias do consumo as grandes formas de pensar que marcaram o século XX. «Nozolino, como acentua Clara a propósito deste artista, é um dos mais inteligentes e lúcidos fotógrafos do mundo e do mundo que ele escolheu fotografar. Não é um lugar poético e terminal que nos é descrito numa linguagem de secura e beleza perigosas.»
CFA, contornando a brevidade de um almoço com Paulo Nozolino, preferiu falar com o artista na casa dele, «uma conversa no estúdio feita de cigarros e um copo de água. Paulo Nozolino é como a fotografia que faz. Não há desperdício nem erro. Não há indolências»
Tendo em conta o seu prestígio internacional e o extraordinário currículo de Nozolino, gerado em muitos lugares e partes do mundo, CFA indaga: Porque é que voltaste?
«Porque estamos condenados a padecer aqui.»
Porquê padecer? Isto é a tua casa.
«Não, isto é o lugar em que eu nasci. Calhou. Uma pessoa só se apercebe onde está por volta dos 15 anos. Antes, é a infância. Filho único, a falar sozinho, a brincar sozinho. Cromos, normal. Liceu Francês, Liceu Camões.
A bela e simples viagem ao longo da vida deste homem cujo olhar tem produzido excepcionais percepções do mundo, felizmente «aprisionadas» na fotografia, é-nos dada pelo texto exacto de CFA. Ali ficamos a saber que Nozolino, descendente de portugueses, tem italianos na sua genealogia, e houve também piratas genoveses que faziam tráfico de escravos para Cabo Verde O avô era de Cabo Verde. Era militar. Tenho sangue italiano, sangue negro, sangue judeu»
«Ouvia música. Dylan. Quando ouvi "Like a Rolling Stone" (tinha uns 10 anos) foi um choque brutal.» Nozolino fala da voz de Dylan, o som mono, um som fabuloso. Diz que ouviu aquilo sem saber como se chamava. Depois dessa primeira vez, só encontrou essa referência três anos depois. Era uma descoberta marcante. Em redor, naquele tempo, havia pouca informação sobre todas essas coisas, literatura, poesia, artes plásticas, cinema. Tudo tão pouco que não podia ser só isso.
«Política? Era tabu em casa. Só sabia que não queria estar na Mocidade. Tinha um grande amigo no liceu Camões, o único que parecia interessado nas coisas de que eu gostava.»
CFA: e a ameaça do serviço militar? A guerra de África?
«Apanhei um período de grande turbulência e mal-estar com a minha vida em Lisboa. Como é que se pode ver o "Easy Rider" no Império e vir para a rua e ver a Fonte Luminosa? Eu queria aquela estrada. Sair.» Paulo Nozolino confessa que começou a beber e decidiu estudar pintura, fazendo um curso rápido nas Belas Artes. Mas é então que escolhe a fotografia. Uma namorada fotografada com a primeira máquina. Um corte na relação dela. Acabou por perdê-la na Almirante Reis. Nunca mais a viu. Não estava tudo perdido. «Não se perder tudo, pode guardar-se alguma coisa do que se viveu. Não estava tudo perdido.»
Londres?
«Eu queria sair daqui. Quanto antes. O meu pai ajudou-me muito. No London College of Printing aprendia-se tudo, desde as artes gráficas à impressão. Apesar das ajudas, sobreviver fez de mim porteiro de noite, "sex shops», imensas coisas, andam por aí. Mas acho que sim, que foram os melhores anos.»
Partilha casa com Sic Vicious.
Paulo Nozolino numa experiência terminal. O grupo. Ambiente insalubre. Era um squat. Mudavam de um lado para o outro. Partiam objectos de casas abandonadas em King's Road, mesas e cadeiras, para alimentar a sua própria lareira. Paulo declara que nunca fotografou esse espaço inominável. A droga segurava as pontas. E a primeira máquina que teve, a sério, foi uma Nikon.
«Na escola aprendi coisas técnicas e nas galerias aprendi o resto. A fotografia americana encheu os olhos e a mente de muitos de nós. Mas pensei em coisas diferentes. E entretanto a fotografia imperava, os meios americanos também. Abundavam os estímulos e as contradições de gosto.»
Apesar da importante tradição inglesa, das modalidades praticadas pelos americanos, além do fotojornalismo, a verdade, reconhece Nozolino que nessa altura - «Eu não sabia o que queria fotografar. Nos primeiros cinco anos andei à deriva. Muitas horas de câmara escura. A realidade não existe, o que existe é o que fica no filme». (aqui devia haver um link para o Blow-Up). «Da nota à frase final, o mais importante é a edição. Não queria que ficassem coisas que já tinha visto. E queria coisas que fossem um bocado eu, ou mesmo muito eu».
CFA, a fotografia como espelho?
«Sempre achei que a fotografia é muito pessoal. Na escola era empurrado para coisas concretas. Jornalismo, moda, publicidade.» Era como uma recruta em que a mínima ordem se tem de cumprir. Mas quem se prepara como um soldado ganha alguma coisa com isso.
«O McCullin regressou sempre à guerra. Até poder. Agora fotografa paisagem. Fico arrepiado
quando penso nele e no seu carisma. Ainda me passou pela cabeça ir para o Vietnam».
CFA, Tens vivido em movimento, mas a fotografia tem, em ti, uma qualidade de quietação inquietante. Mas não pode haver silêncio. E como se recusa, entre as explosões que nos cercam, o movimento?
«Isso já tinha sido tão bem feito pelo Cartier-Bresson. O instante decisivo. Eu queria um anti-instante decisivo. O momento da contemplação. (...) O movimento que nos atira ao contrário do real, obriga-nos a desejar, até ao desespero, parar e contemplar. Compreendi que havia coisas que não podiam ser fotografadas em movimento». Ele diz: é preciso sentar no passeio, pousar as máquinas e ficar a olhar para a mesma coisa durante meia hora. A contemplação. A mobilidade de que me falam é outra coisa: é saber que isto está aqui e estará aqui para sempre.»

fotografia de Rocha de Sousa

Aqui, e antes de tudo, preciso pedir desculpa por assumir esta partilha, na semelhança e na diferença. Nozolino é um fotógrafo altamente reportado, experimentado, e que se deslocou por esse inquietante território a que se chama internacionalidade. Eu sou um professor universitário aposentado, crente no valor do esforço e da prática multidisciplinar. A pintura seca depressa e imobiliza-se, mas pode ficar com indícios de uma decisiva e descobridora mobilidade visual. Trata-se de uma arte absorvente e que o século XX desmultiplicou, recriou, dividiu em breves e grandes certezas. Mas isto não faz com que rejeitemos a coisa pressentida, um rosto que passa por nós à janela de um autocarro e sobre o qual logo ficamos cientes da sua perda para sempre. Há fotógrafos que são caçadores desse instante suspenso ou do que resta dele, desfocado. O mundo é muitas vezes impróprio para a contemplação, mas tornar contemplável um instantâneo daquele rosto são milagres da fotografia e do cinema. Por vezes, na fotografia, o rosto olha-nos, incisivo, e mal percebemos que ele ia em movimento. A mobilidade visual serve-se das artes do espaço e do tempo para conceptualizar o real, para lhe arrancar os ângulos secretos e as impossibilidades da percepção. Que fazia o fotógrafo, em «Blow-Up»? Movia-se silenciosamente como os caçadores que esperam enquadrar uma figura na mira ou os fotógrafos tornar eterno um instante, reabrir as formas avassaladoras e justamente pela edição. A provável descoberta do fotógrafo no filme de Antonioni tem a ver com a desmontagem do real para o contemplar, entre partes, o que nunca vemos com os olhos. O espelho é um breve engano. O cachimbo de Magritte é a declaração peremptória de que o real é impossível, ou melhor, é sempre mais, é sempre outra coisa, escapa-nos perante a obliquidade das distâncias.

fotografia de Rocha de Sousa

Oiçamos de novo Paulo Nozolino:
Tudo é perecível, a coisa e a imagem, a pessoa e o suporte. Não fases fotografia digital?
«Não existe. Justamente, existe a contemplação e haver uma prova de contactos, com 36 fotografias que contam uma história, eu andei aqui, dobrei esta esquina, almocei aqui, dormi aqui, isso fica.»

Controvérsia pode gerar linhas divergentes, paralelas, cruzadas, sobrepostas. Nesse caso, uma delas é invisível, deixa de existir. Mas a linha recta, precisa, ao longo do papel, pode ser uma figura contemplável ou a fortuita aparência de algo que esconde o próprio tempo. A menos que nos movamos para a esquerda e para a direita, encontrando todas as linhas anteriores. Esse tempo cinematográfico, gráfico também, não se gera por completo no olho nem na objectiva da câmara fotográfica: é um conhecimento, através da mobilidade visual, dos equívocos da percepção e da representação. A alma de uma fotografia (um retrato, por exemplo) ressuscita de memórias anteriores, pode revelar dinâmicas ou colocar-nos a olhar para o fundo dela. Foi assim que descobri o ser dos meus pais num retrato institucional de família. Desse quase impen
sável resgate resultou um livro: «Talvez Imagens e Gente de um Inquieto Acontecer» Essa também é uma forma de ultrapassar o perecível e alcançar no futuro um testemunho da verdade.

fotografia de Rocha de Sousa

Os restos de um registo centenário são, apesar de tudo, uma permanência. E a mudança de enquadramento de uma mesma coisa, torna-a outra, sendo esse um dos pontos base da mobilidade visual. A fotografia que vemos aqui já esteve na nossa retina de outro modo. E parecia diferente ou mesmo outra coisa. As nossas bases para esta relação com o real são um ponto essencial da nossa formação, do nosso saber e do nosso ser. Os pontos que assinalam olhares nossos por esse espaço fora são muitas coisas. Um gesto. O amor na memória. A casa onde vivemos é uma base indispensável à nossa estabilidade mental: viajamos até ao Oriente e, quando voltamos, a casa é como um ser vivo e comovente, sentamo-nos e (eventualmente) choramos. Nozolino conta a sua experiência em Berlim. «Há lugares no nosso trajecto pelas coisa que nos deixam feridos. A descoberta do Holocausto levou-me para trás. É então que se compreende o que significa essa coisa terrível de invadir, ocupar, matar pessoas, conquistar. Arrumar tais realidades, ultrapassar o horror que deixaram entre nós, essa é uma tarefa importante da literatura.» Com ela e o cinema, Tarkovski faz-nos ouvir os poemas do pai. É isso a vida. «A verdade é o modo como eu interpreto o mundo. Essa experiência é essencial, o nosso sofrimento, a vida». _______________________________________________

Este post decorre da entrevista assinalada acima, da acutilância de Clara Ferreira Alves e das próprias experiências do autor na pintura, literatura, cinema e acção docente. Só conheci Paulo Nosolino muito tarde, mas as nossas vidas, diferentes, foram contudo paralelas no tempo, no espaço, em certos padecimentos da alma, na espera, enfim, de não ser preciso desfechar um tiro na cabeça.

RSousa

quinta-feira, janeiro 06, 2011

LONGA TRAVESSIA ENTRE A MORTE E A VIDA

fotogramas de NOSTALGIA, de Tarkovsky
Estas duas imagens pertencem a dois instantes do longo e belíssimo travelling do filme NOSTALGIA, da Tarkovsky, num lugar vazio de banhos, lugar que o autor transfigura para uma sequência quase ritual ou litúrgica, a prece por alguém, a promessa de alguém, terrível travessia sobre pedras, restos de água, detritos de lata, na condição processional que é, só por si, e também, figuração do sacrifício e da esperança que a chama de uma vela transportada pelo personagem se mantenha contra a brisa do tempo indefinido. Duas vezes a chama se apaga, três
vezes o penitente recomeça. Ele ainda nos explica, com os edos, que à terceira é de vez, superstição das pessoas, propiciação da esperança e da perpetuidade do fogo em partilha com a água.
Num silêncio nem absoluto nem puro, o homem mostra-se o grande inventor de todos os ritos e todos os mitos, com os quais procura exprimir-se para melhor se conhecer. A grandeza desta cena de Tarkovsky é, só por si, um filme completo, talvez a história de um Sísifo triunfador, exactamente quando conseque atravessar todo o espaço inominável, sempre com a chama acesa, numa delicadeza difícil de sustentar, e cujo sentido ontológico nos vem declarar a permanência dos elementos vitais, o fogo e a água.
É porventura trágico viver-se numa época em que o objectivo deste inabalável discurso da travessia entre a morte e a vida, um renascer construído com tal metáfora, não voltará a ter equivalente no cinema de amanhã, aquele que se aproxima, tecnológico e autista, lúdico e impensável, como uma grande onda capaz de engolir cidades inteiras, sem direito a restos, algo que talvez aponte um futuro onde a beleza ensurdecedora das obras de Tarkobsky não passrá de património arqueológico, devoradoramente investigado por alguns sábios cujo interesse reside, com efeito, em demonstrar que o homem do século XX já era um ser pensante, para o qual a filosofia vogava nas palavras e nas imagens, apenas tornando visível a profundidade confusa de todos os genocídios. Os cientistas que procuram o passado e as suas grandezas, talvez antecipações do futuro, índicações da morte irrevogável, saberão concluir que nunca mais haverá as Grécias de um tempo restrito, o silêncio significante de NOSTALGIA, porque se terão fechado as fábricas onde o pão se fazia contra o silêncio, à superfície e no abandono. A verdadeira performance do homem não está em Deus, está, como Tarkovsky nos mostra, nele mesmo, pela Arte. Toda a transparência do ser está na singeleza ímpar deste rito, feito para lá do vazio, sempre através da água e do fogo, que muito poucos meditarão com esta exacta grandeza, daqui a cem anos, já sem arte nem sonhos, apenas de frente para a orgia espectacular, no crepúsculo da imagem do fogo bruxeleante e no pântano onde a água desaparece. Será um tempo em que, inexplicavelmente, cada vez mais, milhares de pássaros caiem do céu, sem razão nem ruído.

foto de Rocha de Sousa

segunda-feira, dezembro 20, 2010

DECIDIR O LIMITE TERMINAL DO SOFRIMENTO

foto de rocha de sousa

A questão da vida é questão da morte. Só a morte significa a vida. Albert Camus, em O MITO DE SÍSIFO, escreve: «Só há um problema filosófico. o suicídio.» Se estivermos perante um suicídio por nada, só porque sim, porque basta, mais nos interrogamos sobre o sentido da vida. E muito dificilmente aceitamos que o sentido da vida é ela não ter sentido nenhum. Que o próprio homem pode decidir contra a vontade de Deus. Pode pensar: estou em sofrimento e não sei porquê nem para quê. O absurdo desse sofrimento pode iluminar-se com as minhas próprias mãos, pelo livre arbítrio, através da porta de um suicídio dignificante. O problema de decidir sobre a morte, dignifica a indignidade de um sofrimento sem fim, como o de Prometeu agrilhoado, é um problema que respeita à consciência e ao poder que Deus nos legou. A eutanásia, como forma de superar uma dor ignóbil, o prolongamento de uma falsa vida vegetativa, atravessada por breves instantes de consciência no horror da total dissolução da carne, é verdade iluminada, é escolha do limite no limite, é o acto supremo da solidariedade. Só as situações extremas, tantas vezes ilustradas pela guerra, podem explicar o apelo o apelo à morte ajudada. Há situações de combate em que uma baixa súbita, completa, coexiste com a baixa por ferimento não imediatamente mortal mas sem a menor possibilidade de retorno: coloca-se um garrote na perna esfacellada e o que resta dela morre em poucos minutos, fora da consciência. Ao longo de uma hora, o garrote já não trava o fim e há no interior do corpo hemorragias irreversíveis, submetendo o paciente a dores insanáveis, à perda da fala, à proximidade da morte minuto a minuto. Restam dois companheiros com confortam o moribundo, com risco da própria vida e com as comunicações rádio cortadas, incapazes de administrar o tempo e o tempo de aproximação das forças contrárias. O vivo quase morto atravessa um brevíssimo instante de consciência e exprime aos outros, com os olhos, que lhe cerrem as pálpebras. Carregados de ideias feitas, a força inibitória de certos lugares comuns, ainda hesitam muito tempo. Há duas opções neste caso anti-natura: eles acaam com o sopro de vida do companheiro claramente condenado ou eles esperam, procurando perceber se o companheiro já morreu ou ainda não, dúvida que os mata aos três com o rebentamento de um morteiro ali mesmo, dentro desta mistificação da vida, do heroísmo, em pleno espaço do absurdo. Em muitas situações em que o dilema se coloca, em casa, nos hospitais, na solidão, a eutanásia tem o sentido da bem-aventurança dignificante. Quando alguém se encarniça sobre um semi-morto, administrando-lhe fluidos de efeito curto, não eternizável nem curador, esse alguém renega a força da razão e o sentido da medida, do tempo, do limite moral

terça-feira, novembro 23, 2010

OLHOS NOS OLHOS, OLHARES INTRANSITIVOS


Ninguém pode escrever o não limite de todas as teias. Desde os teus dedos finos, do teu olhar límpido, à barba encrespada do meu rosto. Olhas inteira para mim, tanto tempo depois, e já não encontras os sinais que animava a tua própria vida. Não sei se esta forma de estar anuncia a brevidade do tempo que me resta: tu olhas e também não sabes, sobretudo porque a tua vida só agora começou: passos destinados, saltos, os ombros em cruzeta, sem medo, vogando por cima da água turva, a retina e o sexo, vais com elas, as tuas amigas, quando eu ainda tinha essa idade e te pedia um bocado do capote por causa da chuva. Tu entras sempre nos meus livros que não chegam a ninguém, ficas apenas próximo do meu coração de trapos, deixo-te a vida completa de personagem amada, close-up do meu beijo escondido, quem eras? Eu sou quem descortinas, na sombra do último acto da vida, olhos baços, ardendo, tu atrás da retina e a palpitar num cinema primeiramente mudo, a cidade, o véu dentro da cidade, a coroa de rosas brancas a desprender-se mal dos teus cabelos finos, lá fora o fantasma da noiva e a música de uma só nota, fingindo motores, cais, a dor das partidas marítimas. Se morreste, não sei, mas se morreste foi injusto, terrivelmente cedo. Estou aqui para te substituir, só, a pensar em letras e palavras, mil palavras para a imagem de Ana Orwell morta, história dos crimes em todas as ditaduras, histórias que me contaram em surdina num recanto de bebidas em Buenos Aires. Não dançavas o tango, eu também não, mas agora ainda penso que talvez não tenhas sido tu a vítima daquelas noites, osso na vala dos outros, resgte em lágrimas agora, ao ver-te na fotografia que revela o sentido do teu olhar e encobre o resto. Nunca mais terei sobre mim um olhar como esse. Fico à espera não sei de quê, dedilhando palavras ao acaso, olhos no teu olhar suspenso. Fico à espera, ossos, memória, quase submerso no pântano da náusea.


olhares intransitivos

segunda-feira, outubro 11, 2010

ODE À SAGRAÇÃO DAS PALAVRAS PERDIDAS


Deus escreve-se agora de outra forma, dEUS. Ninguém sabe quais as letras que são dignas, uma, duas, ou quatro ou três. Escritas que remontam ao século XX, a cidade entre datas, rasgões uns após os outros e muitos mais a montante, god, meus, quatrocentos e setenta e oito há dias, armas aperradas, barreiras e ruas e descolagens sábias, outras vorazes, curtas, incompletas. Nada disso releva da verdadeira vida quotidiana, manhã com nuvens assim, arrendadas, arroba, margem de um rio desconhecido entre barragens, d de deus, zeus, Odan num sítio lembrado por Camus, junto ao mar, gaivotas, não pombos, gente morta, jornal. Cada tira de papel descola-se ao vento, enrolada nos dedos, devagar, como aquela nuvem suja de Outono, tempo cuja caligrafia passa por dentro da chuva em Novembro, letras enlameando o chão, bocados de papel e cola endurecida, risos, rio, rombo, o barco feito de palavras em garamond, velho do velho Armindo, 16, cliente amputado do t e do e, agora arrastadamente senil, a vender castanhas, pobre barco sem b, B grande, Caixa Alta, mais algarismos soterrados num rasgão, fundo negro e pasta para colar rolos de papel. Por baixo das linhas horizontais, corte sobre corte, há serviços propostos, três, um 4, uma haste de H, dobras penduradas, enoveladas, entre mais descolagens rasgadas, grandes letras em baixo, incompletas, indecifráveis, por cima talvez ARRECADAÇÃO, um buraco até ao fundo da parede metálica, esquina que deus dobrou como qualquer homem invisível, os carros devagar, pardos, passando a diesel, Godot ou a palavra GOS, pode ser gostei, gostava, gostaria, rasa a parede cinzenta, entre buracos, vinte ou trinta camadas de cartazes, imensos, molhados, tardios, morrendo sobre letras salvadoras e nem sequer uma garatuja de meninos nascendo moços, zonzos de jogar o múmero ou a letra imprevisíveis para milhões de pessoas encobertas, passos, pernas inventadas malogradamente magras, pontas de um R meio escondido que impede perceber onde acaba a palavra ali começada, substituída, coberta com mais conceitos publicáveis, pública forma, Agosto ardendo, mais cola. Outono e as folhas empurradas, secas, sobre as pedras de calcário cúbicas, não escritas, pensadas, olvidadas, aqui se escreve e aqui se descreve, se desgasta e resgata, hoje sobre ontem, manhã, amanhã, deus rimando com zeus ao lado dos meus intransmissíveis sonhos. A cidade está morta. Deus ficou à espera. Ninguém sabe como descolar de nós esta dor vagarosa no limite da cegueira.
_____________________________________________________________ imagem: fotografia e técnica mista, de Rocha de Sousa

domingo, outubro 10, 2010

O LUGAR DO TROLHA DEPOIS DO ALMOÇO

o lugar e o tempo

Depois do trabalho da manhã e após um almoço avinhado na tasca ali perto, o trolha senta-se aqui, numa rua atulhada de casas velhas e novos automóveis. Deixa-se cair pesadamente no sofá-maple, saca o seu tabaco da bolsinha pendurada ao peito e puxa a carteira amolgada das mortalhas de papel. Carrega de fios de tabaco o leve rectângulo bem escolhido do maço, guarda tudo para ficar apenas senhor dos meios elementares com os quais começa a enrolar um cigarro, devagar, os olhos baixos, os pés cruzados em repouso sobre o asfalto. Para fecho desta acção, corre a língua húmida a todo o comprimento da faixa de papel. Enrola um pouco mais, amaciando o cilindro imperfeito com os dedos em espátula, e só então remexe as coisas que tem no bolso da camisa meio enlameada das urgências do trabalho. Assim, respirando com avidez, recosta-se no assento e acende o cigarro preso entre os lábios. Até parece que metade dele arde logo às primeiras chupadelas. Mas não é bem assim: o que explode no início é a parte anterior da mortalha não obstruída pelo tabaco e ele sabe disso muito bem. Porque não liga, parece dormir, o chapéu tombado para a esquerda, num deslizamento sobre a cabeça suada, e assim continua a puxar o fumo, gesto lúdico que acende a ponta do cigarro e nem deixa perceber o volume de ar implicado, nem mesmo quando o homem abre a boca em taça e empurra com a garganta, para cima, a nuvem que engolira profundamente. Este ritual vai durar cerca de meia hora e, pelo menos, mais um cigarro, entre cuspidelas de alívio atiradas ao lado, no asfalto. Nos dias de frio ou de chuva, torna-se mais difícil permanecer muito tempo naquele lugar.
O trolha, já pesado, moído da vida e do esforço do trabalho, vai quase sempre para casa após o turno da tarde, ajoujado por utensílios, um casaco, o saco dos pratos e do tacho, alguma compra mitigada em honra do jantar quente. Sente, cada vez mais, o corpo todo dorido, tempo depois também o fundo do peito, uma dor no fim de cada aspiração do ar, ideia de limpeza do fumo que ele imaginava depositado na ponta dos pulmões, semana após semana, a nuvem se calhar pesada demais para subir. E a tosse começou assim, julgava ele, pela vontade de ajudar a nuvem de fumo a fazer de balão, a soltar-se da boca aberta como num longo grito de dor.
***
A tuberculose voltava ao bairro, o trolha sabia disso e pensou no seu cansaço, na sua tosse, no vício que o tabaco instalara em si, mortalha após mortalha, um ardor na língua, um gosto supersticioso de morder a ferida com o veneno do fumo, embora também calculasse que tal cura podia matar o doente. E que fazer, todos os dias, ao alvorecer, daí a pouco no transporte operário, sardinhas em lata, amolecidas pelo trajecto feito aos solavancos, uma hora para lá, duas horas ao contrário, visto que o retorno era feito nos transportes públicos, dois autocarros, o primeiro durante cerca de quarenta minutos, e o outro, sem contar com a espera, mais ou menos vinte minutos. O trolha tossia, envergonhado, para um lenço sujo, onde já vira uns fiozinhos de sangue. Pensava, sentado na rua, no maple encarnado, que o seu corpo estava doente, imaginando coisas dos bronquios ou da garganta, e algum reumático daqueles dias húmidos suspenso dos altos patamares do edificio em construção. E pensava mais: pensava que podia andar envolvido com qualquer mazela dos pulmões, morrera-lhe um tio em pouco tempo, atravessado por forte pneumonia.
O homem, zonzo, carregado de tabaco e vinho, chegou a ponderar uma ida ao hospital. E se me internam? Se tenho algum padecimento difícil de curar, que exige muito repouso mesmo depois do internamento? Ele tinha e não tinha razão. A falta de contratos rigorosos e justos havia de ter consequência laminar no desconto do salário por cada falta ao trabalho.

Que raio é que eles querem da gente?, perguntava o trolha a si mesmo, sentado ao lado da lata de pedras, que levaria mais tarde para separar bem a horta do quintal.

Chamava-se Armindo, este homem básico, apenas bizarro pela forma como se habituara a descansar depois do almoço naquele sofá velho, abandonado junto à calçada, que nunca fora removido pelos hipotéticos serviços camarários. E afinal, lateralmente contra a corrente de trânsito, foi ali mesmo que o Armindo adormeceu para logo morrer. Levaram-no os bombeiros no outro dia, quando alguém percebeu que o desgraçado dormira ali, sem se mexer, a noite inteira, o chapéu rolado até meio da rua. Chamava-se Armindo e vivia só.





fotografias de Rocha de Sousa.
O texto não pretende resgatar
qualquer neo-realismo.
É apenas uma reflexão
sobre o lugar e o tempo

sexta-feira, setembro 24, 2010

OBRA DE DEUS ECOGRAFADA NASCEU MORTA

fotomontagem pouco antes do infausto acontecimento
Alísia foi mulher na altura própria, tinha um corpo agilizado e fresco na forma já sensual, coxas flamejando a precocidade da sua avisada saúde, e usava então os cabelos compridos, sempre soltos. A sua vida na Universidade veio a desenrolar-se com clara naturalidade. Pertencia a uma geração do tempo do Erasmos, das viagens que atravessavam a Europa, dos casamentos emplumados e brancos e míticos, ancorados nos portos nupciais ou depressa em casa, já feita a partilha dos corpos, por vezes com filhos vindos das primeiras entregas.

As famílias, na classe média, esboroavam-se pelas lisboas da concentração defeituosa, mas Alísia, mesmo depois de casada, ainda podia abraçar os pais, alguma avó, primos e primas do engenho genealógico. O marido jogava bem o jogo dela, depressa saltaram barreiras, o primero filho, por exemplo, que era oferta do sangue e representação da família na lembrança do mesmo enlace.
Eduardo e Alísia retomaram trabalhos e estudos, como se nada de preocupante tivesse acontecido. A família ajudava-se em certas horas de ausência, as irmãs, os filhos, essa comunidade cujas raízes subiram do fundo do tempo, regulares.

E um dia, em pleno jantar da irmã mais velha, Alísia levantou o corpo mal borrifado de vinho, fez um ar sério na direcção da rapariga, e disse:
Sabes, Maria, este jantar não é só para saudar o teu aniversário: serve também para te dizer que vais ter mais um sobrinho. Está aqui, dentro de mim, já a crescer, e peço que façamos votos para que tudo aconteça por bem.
Um ano depois dessa alegria materializada em festa, depois também da precoce cerimónia do baptismo, o ritmo da vida do casal estabilizou numa espécie de velocidade de cruzeiro, entre o trabalho, a família, os projectos cuja dinâmica já lhes concedera coisas e favores. Mas isso envolvia a ideia de um segundo filho, gravidez tentada, preparada, assumida quando os sinais acusaram esse princípio dentro do seu habitat de metamorfose.

A barriga de Alísia foi crescendo e ela dava por si, reclinada na sala, a sentir uma gostosa turbulência dentro do seu corpo, pontapés de que toda a gente falava, a pele do ventre dia a dia cada vez mais esticada, começando a formar balão, e um rosto placido de mãe, seguro, aberto às amenidades dos encontros. Houve momentos, apesar disso, sob os imperativos da espera, em que Alísia sentiu alguma impaciência, afagando a barriga para se aquietar com as respostas daquele ser entretanto diagnosticado no senso da ecografia. Por agora não é menino nem menina, dizia a médica a sorrir. Porquê? Porque não está em posição para se ver sem qualquer dúvida; e este feto parece caprichoso no comportamento dentro da sua bolsa. Alísia ficou um pouco ansiosa mas não exprimiu essa impressão a ninguém. Decidiu passear mais pelo bairro, quase todas as tardes. Ficava, com frequência, a olhar os meninos do parque que ali fora instalado, e deixava a mão deslizar distraidamente pelo volume redondo do seu ventre. Vigiava (quase sem o saber) a presença lúdica daquela vida a que se sentia ligada por estranhos laços, algo cujo sentido não era capaz de relacionar com o emergir da maternidade, com esse transporte para uma outra dimensão, a ideia do privilégio ou de bemaventurança. Se calhar tinha um sentimento mais social e comunitário, embora terno, da sua relação com o filho e o próprio papel que ele viesse a desempenhar.
Neste percurso natural e contudo bem complexo, Alísia, ao sentar-se no jardim, pensava cada vez mais na sua responsabilidade enquanto mãe e ser cívico. E, dia a dia com maior acutilância, a sua mão apalpava a barriga. Num dos dias da primeira semana do sexto mês, depois de observar com bonomia os gestos das mães estimulando e zelando pelos filhos no parque das brincadeiras, Alísia julgou perceber, de repente, que algo se passara no seu ventre. Procurou respostas mas o filho parecia adormecido. Um dia, dois dias, e o alarme biológico fê-la pensar na existência de qualquer mutação naquela enorme bolha de vida secreta que tinha sido, até então, o palpitar da sua gravidez. O marido ainda tentou sossegá-la, podia ser apenas a característica de uma fase. Pois sim, dizia ela, mas isso não nos deve impedir de sondar o estado do nosso filho.
Marcaram uma ecografia para a manhã do outro dia e apresentaram-se à médica com a maior naturalidade possível. Sentiu algum incómodo?, perguntou ela a Alísia. A moça encolheu os ombros: Não, não senti nada, talvez tenha sentido de menos.

O exame foi demorado, a médica concentrava-se o mais que podia, criando alternativas de visionamento e usando, por fim, apenas o estetoscópio, sempre a mudar as áreas de escuta. Depois de uma ligação ao amplificador, e olhando o registo horizontal no monitor, a médica acabou por desligar tudo, limpando, com algum desencanto, o ventre de Alísia. Afinal era uma menina, disse a médica num murmúrio, sem perceber que adiantara a notícia. Era? Sim, minha querida, lamento ter de lhe comunicar que a sua filha, por razões incertas, faleceu há algum tempo.
Alísia foi então, no hospital, submetida a uma provocação expulsiva do feto, com a química habitual usada em casos semelhantes. Teve de esperar mais desta vez para um parto absurdo, uma espécie de paradoxo. Quando a resposta do corpo começou a chegar, e apesar dos preceitos de circunstância, Alísia viu-se compelida a ajudar o mais possível a que Deus acabasse a sua obra incompleta. Um parto assim, doloroso em dois sentidos, pela vida e pela morte, é um acontecimento humilhante, que reforça tantas das perguntas expressas por homens e mulheres em torno dos seus casos, das suas frustrações ou desistências. Alísia sentiu que tudo terminara, embora soubesse que terminara vários dias antes. A Natureza não tem consciência moral. E os erros da sua pulsação estão quase todos fora do nosso conhecimento racional.

Alísia, pálida mas segura da sua inocência, teve de ficar retida no hospital para que nenhuma sequela a afectasse, com melhor explicação e igualmente nenhuma justeza.

sexta-feira, agosto 27, 2010

DO DILÚVIO ÀS LAMAS ASSASSINAS E ETERNAS

cheias diluvianas no Paquistão

Já não sobra tempo
para limpar toda esta lama.
Donde vem tanta água, tanta lama,
agora que as ondas do mar
foram devolvidas ao oceano?
Talvez do céu mudado em metano.
A demorada persistência dos fumos
parecia clamar pela chuva como salvação
e alguém respondeu a isso com mais lumes.
Chuva de lama, enfim, a cair sobre a terra,
Sobre cada serra,
e milhões de pessoas vivas
assim sepultadas, sofridas,
ou submersas,
imersas
no pântano imenso
em que o mundo se tornara.
Oratória do medo mais intenso,
além das guerras e de outras mortes,
outros corpos apodrecendo então
por todos os declives de encostas fortes
até ao apagamento de todo o chão.
Silêncios rasgados.
Rumores pressentidos.
E ainda corpos descarnados em velhos jardins,
talvez nos sítios encobertos onde floriam giestas
ou mesmo nos poços plausíveis das florestas
entre o zumbido dos insectos carnívoros
que sempre ali haviam permanecido,
além de todos os males do homem afinal vencido.
Gárgulas sangrando, desertos e gargantas,
caules mastigáveis, suco escasso de plantas,
tantas,
todas, quebradas, quase secas.
O destino destes povos, de quase todos os povos em volta,
decide que sejam soterrados, sem revolta,
o mar por cima,
a terra também,
como as cidades estilhaçadas
e os caminhos e os animais,
esgotados,
apagados,
vivos nunca mais.

fotografia de rocha de sousa

domingo, agosto 15, 2010

OS INTESTINOS DO IMPERADOR E O FUTURO

3
Deslavado, obtuso, os olhos fixos no vazio, este «trinca espinhas» era o rei mais novo dos povos ditos cristãos, ainda mal integrados na orla sul da nação, gente de roubos amnistiados, filhos de um recrutamento selvagem e com belas promessas relativas a essa terra, uma terra luminosa e branca, com praias onde o oceano vinha derramar-se, devagar, em pequenas ondas que rolavam murmúrios sobre a areia longamente salpicada de pedras redondas, afeiçoadas, grande variedade de conchas, detritos de cascas rudes, outras brilhantes, prata ou lilás, espólio de milhares de vidas ali acabadas.
O rei sempre ouvira falar na dilatação da fé e do império. Reuniu os nobres e disse-lhes que queria atravessar os males do sul e continuar o reino além-mar. Os nobres, assombrados, discutiram durante três dias e três noites se deviam ajudar o rei. Acabaram por aceitar a aventura, se este tivesse maior número de recursos humanos. O rei tinha estado sempre calado, e havia dormido as noites da duração da conferência. Ao cabo de três meses, o rei assim se fez acompanhar, metido na sua carruagem almofadada, cavaleiros à frente e atrás, ladrões agenddados como mercenários, a fingir de peões da irregular infantaria, dias e dias a pé, enquanto as provisões vinham na rectaguarda, animais de porte, gente em massa, amassada, embebida no pó e nas ordens dianteiras dos capitães, lacaios de fidalgos, uma frente luxuosa, areada de véspera, hirta, carregada de adereços ou bonitos arreios. As outras coisas, talvez as mais secretas, seguiam numa viagem paralela por mar, a costa à vista, barcos vários, também de gente vária, vinda dos pactos como outrora, senhores de guerras santas, de muitos genocídios e pesados saques, fortaleza a fortaleza.
Em terra, já acantonados para além das praias, os exércitos do rei esperavam por sinais: e toda a gente viu, um dia, uma longa faixa de gente vestia de branco, cobrindo por completo a orografia acidentada do horizonte. Os cavaleiros tentaram dissuadir o rei do que poderia ser um verdadeiro suicídio. O rei, de pequenos olhos meio fechados disse apenas:
«Há fé. Há o império». E, por estranho que pareça, partiu à desfilada, na cega decisão de enfrentar aquela gente ao longe, infiel, desamada de Cristo. As hostes do rei não tiveram outro remédio senão partir, enquanto viam o inimigo abrir-se em grandes tenazes por onde detriam que entrar. O impacto foi clamoroso, seguido pelos mercenários que metiam coisas ao bolso e abriam crâneos às cenetnas. Os frecheiros procuraram cobrir a cavalaria, acossando os adversários, com tiros em arco, na sua rectaguarda. O rei cavalgava ao longe, cada vez mais absorvido de muçulmanos, e era ferido de raspão, aqui e ali, gritando que o Império seu seria seu, em nome de Cristo. Numa colina lateral um homem trajando ao mesmo tempo de civil e de sacerdote, erguia-se em nome de Alá, pregador e Komeney, talvez imperador, sim, teocrático e como que vindo do futuro. Mas ele mesmo não resistiu a uma lançada cometida por um pigmeu ensandecido, golpe que o fez cair de joelhos e derramar para o chão a massa borbulhante dos seus intestinos.
É inenarrável o resultado desta trágica batalha, o rei desaparecido, a cavalaria destroçada, muitos nobres prisioneiros, um mar de corpos e de sangue, bandos de mercenários fugindo em direcção às praias. O espólio caberia aos vencedores. Entre os mortos com cruzes ao peito, jóias, arreios faustosos, números em madeira, quase sempre o algarismo 3, porventura código de algum dos batalhões. Os intestinos do falso Imperador, aliás o próprio corpo, foram acomodados na sinagoga de pano. E muito pano rosa por dentro, bordado a rosa, estandartes das duas partes, vermelhos e pretos, decorados a ouro. Fatos de guerra, armaduras, luvas, armas estilhaçadas, cabeças ainda ricas de pedras raras, e sempre o número 3, talvez escrito por Deus quando fazia as contas sobre as consequências desta batalha, do sentido da derrota (num relâmpago) daí a mil anos ou mais: porque os seus anjos haviam descoberto, entre lanças e espadas, pistolas metralhadoras, canhões sem recuo, rádios e muitas fotografias do que parecia ter sido uma batalha longa, talvez acontecida já no terceiro milénio, do Irão até ao Egipto. Seria este o famoso efeito de borboleta? As coisas estavam ali e não podiam estar ali: a Sua omnisciência dava-lhe conta, nos cortes do tempo, de mortes e ressurreições inesperadas. Deus procurou enviar emissários para certas zonas problemáticas, a fim de compreender se os exércitos haviam sido expurgados de armamento ligeiro, do fim do século XX. Sentia-se fragilizado e acabou por perder os seus correios, mortos como espiões ao serviço de potências estrangeiras. Alarmado, o próprio Deus terá telefonado para a ONU, donde ninguém respondeu.

pictogramas digitais de Rocha de Sousa

sábado, agosto 14, 2010

BICHOS, GENTE E A VOZ DO POETA PASTOR

foto de rocha de sousa
Sinto a boca seca de tanto gritar
no imenso vazio das palavras todas.
Por cada silêncio devagar
presumo que escuto o murmúrio das larvas
ou talvez o rilhar incerto das cabras,
essa maquinal mastigação do pasto já duro e pobre.

Sou pastor, penso então, desde o amanhecer.
Ou talvez a partir de ontem, na terra, sem nada de mim,
durante a hora pesada e lenta e nobre do entardecer.

Agora, descortinando o lado donde vim,
sobressaltado com a paz estafada a meus pés,
olho para o lado inverso, de pedra, para ver onde calha o fim.
O sul, outrora brando, era devorado por chamas altíssimas.
Balindo, pateando, tão gente como a gente que foge,
as cabras correm na sinuosa tontura do medo aquém
e eu grito de novo, quase rouco, aos bichos e a essa gente além.
Desdigo o caminho para o lugar da morte
e aponto um outro lugar, provável salvação da vida,
muralha ou ladeira de todas as veredas,
a norte,
saída mítica para gente como eu, folhas de vento na ida,
palavras soltas, velhos e crianças, a travessia de um deserto
na fuga ao inferno empurrado do sul,
chamas no horizonte aberto
onde se calou a sorte
e nos aponta a norte, contrário à lenda, largos céus de azul
impensavelmente penetráveis pelas chamas e pelo fumo
ainda longe atrás dos nossos passos,
nuvens aqui e além, descompassadas.
Julgava ser escritor, campos e serras para sustentar alguém,
afinal eu mudado em pastor de cabras e desta gente desacontecida,
pastor de acaso, pensante, partindo da coisa lida
porventura em nome do desatino feito destino.
Destinado serei eu quando julgo ser de uma regra só?
Não assim: porque o destino não acontece, inventa-se.

segunda-feira, junho 28, 2010

PELA MANHÃ DO MEU INQUIETO ACONTECER


fotografias de rocha de sousa


Tenho a mão pousada na mesa
e vejo os dedos começarem a desaparecer.
Parecem esbater-se sob a névoa ali dispersa,
já não existem porque já deixaram de ser.
O lápis cai, perdi a mão direita.
Ao passar um dos braços restantes pela cara
não há nada para sentir e um horror espreita
dentro de mim, morro de forma rara
por fora e por dentro, sem cabels nem pernas,
como aqueles corpos cobertos de flores ternas
e cada vez menos visíveis, sepultados sem dor,
queimados, enfim, por um lume em torpor,
sem dor,
claramente sem amor.
Eu também, depois de me ter desaparecido o torso
embora o coração ainda bata
e este olho tombado na cadeira de lata
esteja quase a desprender-se do cérebro e sem esforço.
Agora morri.
Não sei quem escreve por mim e devagar sorri.
_______________________________________
excerto de «Talvez Imagens e Gente num Inquieto Acontecer»,
livro de Rocha de Sousa, em preparação

quarta-feira, junho 23, 2010

AS LETRAS E AS ARTES, PRÁTICA E EDIÇÃO

tácnica mista rocha de sousa

Esta espécie de ilustração foi trabalhada em pintura, fotografia digital, colagem e fecho. Irá recobrir uma boa parte da capa de um livro. Trata-se de uma edição de Maria João Duarte, a partir da sua tese de doutoramento. Este livro será apresentado como qualquer outro, mas não deixa de apresentar conteúdos ainda hoje bem pertinentes: a oposição à ditadura, em Silves e no Algarve todo. O núcleo físico onde «decorre a acção» é a cidade de Silves, muito traumatizada pela PIDE e em face (nos anos 50/60) dos núcleos políticos emergentes na indústria da cortiça, ali onde se concentrava o maior centro produtivo do mundo, na transformação e exportação. Fui testemunho desse esplendor e dessas tensões, quando o governo passou a exportar a cortiça em prancha, logo que tirada das árvores, ofercendo ao estrangeiro uma riqueza em bruto para manejo bem lucrativo. Os donos das terras de sobreiro enriqueceram ainda mais, os trabalhadores ficaram mais ou menos ao Deus dará.

O livro chama-se «Silves e o Algarve, uma história da oposição à ditadura». Esta imagem, partindo de muitos dados visuais de Silves, nos seus diferentes aspectos, multiplicados e reassociados, entrecruzando-se numa atmosfera de quase ruína, tarde vazia, gente recolhida, monumentalidade de restos das fábrica -- e, sobre tudo isso, contra o céu, uma insólita visão que absorve a metáfora sobre o lado monstruoso e vigilante de algo que nos amordaçava, prendia, e por vezes fazia desaparecer. Hoje o sonho é claro, e as ruas não têm este clima terroso dos anos 50. A autarquia tem dotado a cidade de uma panóplia de bens e serviços aceitáveis. A memória dos patrimónios antigos convive com a arquitectura da zona histórica e da baixa em termos urbanos e lúdicos, junto ao rio. Obviamente, já não há as grandes fábricas de cortiça, nem os 6.000 trabalhadores daquele tempo, nem sequer a Câmara pôde segurar o excelente museu da indústria cortiçeira, obra museológica de importante sentido divulgador e pedagógico, premiada internacionalmente. Esta cidade, aliás, padece de coisas ainda sinistras: reconstruiu um teatro dos anos 20, há cerca de um ano fechado; adaptou uma edificação de marcas arabizantes como Institudo Superior de Estudos Árabes: faz algumas exposições e está às moscas, apesar da sua beleza e do seu aprazimento. As modificações da margem do rio Arade funcionam, como as psicinas e as instalações para feiras industriais, comercias, ou da agricultura. Ninguém pode imaginar verdadeiramente a que degradação chegou esta importante cidade da memória árabe e do sorriso que conquistou, entre omissões, nestes últimos anos.

quarta-feira, junho 16, 2010

AS IMAGENS QUE MORAM NO CAMINHO DA FÉ




A velha senhora estava a rezar o terço no filme que secretamente fiz desse gesto. O segredo da arte, no vídeo ou no espaço do medo, é semelhante ao que se passa com o mistério da fé. A senhora dizia palavras para dentro de si, nomes e verbos cujo vago sentido se projectava no interior da cabeça. Aqueles dedos, envelhecidos mas estranhamente decididos, permaneciam imóveis, só se moviam, invisíveis, quando a oração levava à escolha de outra rigidez redonda. Nesses instantes, a memória já guardada abria-se em imagens curtas, superfícies lisas, convexas, brandas, entre outros registos, talvez contrários, a dois milímetros do lado côncavo, milenário, de um fragmento de crâneo. Ou isto ou algo de semelhante, vagamente a cores. As memórias assim, feitas de presenças ininteligíveis, ou quase, serão restos da memória toda, lixo também, cortes neuronais sem princípio nem fim? Essa realidade virtual, certamente absurda, pode servir para fins que desconhecemos, como os pingos de tinta, sobrepostos, a que conferimos autenticidade estética, porventura plástica, sem os limpar do universo da pintura em redor. Essa escolha parece por vezes maquinal, um acaso sublimatório. A arte acolhe e coisifica cada instante assim, procurando dar ao visível meios de decifração do inominável. É a curta entrada de ar nos pulmões quando sofremos uma paragem cardíaca logo superada pelo fio da electricidade restante. Então podemos voltar ao lado sólido e redondo do real, dedos a contar mais uma Avé Maria, por exemplo, no encobrimento das emoções, a razão como que suspensa, motor parado, o sangue a correr sem se sentir, impulso aparentemente arbitrário que enche toda a rede vascular dos corpos. Nas veias que serpenteiam só o manto cutâneo daquela pele enrugada, tocada pelas pétalas sépia das margaridas. Na Avé Maria que não passa de um pretexto para ordenar a simulação sisifiana do destino humano, paragens e andamentos fortuitos, cansaços e imagens sem nome, duas avé marias no corredor da garganta, imagens atrás dos olhos, olhos fechados ou abertos, tanto faz, eles voltam-se ao contrário para receber as mensagens do cérebro. Mãos postas. Um rosário faiscando. O filme. E entretanto, num espaço milimétrico, outra imagem, diferente, sem referências, caída para o lado da retina numa cintilação deslavada e abstracta. Um frame do ser? Um pingo da alma?
Aqui fica, para quem me ler ou ouvir, a importância transcendente das pequenas e inúteis deixas do ser, partículas do invisível, o lado inconcebível da vida como segredo que se desvenda na retoma da aspiração do ar, suicídio interrompido, talvez princípio da fé contada em avé marias e da arte em restos de tinta volátil. Ou o mais remoto instante que parece legitimar a infinitude de cada percepção atrás do limite.

terça-feira, maio 11, 2010

O PAPA BENTO XVI E OS MENINOS LADINOS



O Papa. Do Papamóvel. Com as suas insígnias no avião em que voa e em que chega. Nas visitas. Portugal deve ter aumentado a dívida. Mas os meninos ladinos, portugueses em geral, mesmo laicos e um pouco estouvados, estão a correr para o Terreiro do Paço. Paço engalanado e uma missa para 200.000 pessoas. É uma grande honra a gente poder gastar assim quando o Iva vai para 22%, valha-nos o Santo Padre João Paulo II. Muita gente lamenta aquela deliberação, em 1537, no papado de Gregório VII, sobre a obrigatoriedade do celibato para todo o clero. De acordo com a lei canónica, e desde então, o voto de celibato considera-se quebrado quando o padre se casa, mas não necessariamente quando este tem relações sexuais ocasionais. Viviam à larga, os senhores da Igreja, Papas, Careais, Arcebisbos, Bispos, toda a grande infantaria dos padres. Ainda foi muito tempo para os mais precisados casarem ou terem amantes sem poluir o nome de Deus. Ouvi histórias do alto clero, incluindo, pelo menos, um Papa, que me deixaram atónito pelo avanço dos costumes. Quem é que fez a história dessa época inebriante, entre genealogias esquisitas? Quem descenderá de um papa Alexandre, cuja numeração esqueci? E havia um estranho gosto pelo incesto, não só na Igreja, está bem de ver, e há filmes ingleses (made in BBC) que tratam sem pudor e com grande galanteria esses comportamentos «desviantes», casais irmãos, luxúria entre brocados e prataria. Os ingleses são sábios, ficaram com a Igreja que resultou do Cisma, mais decoro, mais minimalismo, mais cânticos, e um certo acréscimo de fantasmas, meninos, meninas e velhos enterrados nos jardins frondosos das belas Quintas fortalecidas, cheias de torres e sótãos escabrosos, lindíssimos, para tralha menos usada e encontros romanescos.
Mas deixemos isso. O Papa Bento XVI, em visita a Portugal (neste momento está a descansar), esse sim, é a ele que devemos indagar, questionar, louvar eventuais sorrisos. É tímido, dizem. Gostaria de ter ficado o resto da vida a estudar. Talvez lhe ocorresse rever a tardia atribuição à mulher, pela Igreja Católica, creio que por volta do Conílio de Trento, de uma alma. Dantes, embora pertencesse a uma qualquer burguesia, era de condição biológica e teosófica praticamen-te igual a uma cadela, a uma gata doméstica. E todas estas circunstâncias, na contingência mental de padres e povo crente, foi rebolando pelos séculos e até se instalou, radiosamente, na estrondosa basílica do Vaticano, S. Pedro. Hoje, o luxo é maior, mas o poder menos político, com manchas de sujidade sobre os livros do Vaticano II. Quando se ouviu falar num Papa ainda novo, que tomava banho na piscina daquele pequeno reino palaciano e dizia que a missa tinha de ser dita de frente para os fiéis, muita gente estremceu de medo; mas a maioria viu ali um homem igual aos outros, com funções difíceis e diferentes, mas capaz de rir e apontar escolhas. Depois envelheceu e julgo que o canonizaram. Não sei se era excepção para tanto. Mas penso, quer nele quer no actual Papa, quando penso no que lhes terá passado pela cabeça ao escreverem encovadas encíclicas, aparentemente sobre problemas humanos profundos. Porque, em verdade, nada daquilo é para o comum dos mortais. Onde está o estudo capaz de tocar nas razões humanas e espirituais que aconselham o fim do celibato? E as mulheres, além de freiras, misseiras e figurantes dos grandes espectáculos perto do Coliseu, em Roma, ou no imenso terreiro de Fátima, onde se acomodou a maior basílica do mundo? Podiam fazer um pouco mais, não é difícil imaginar, conferindo-lhes funções de fundo, de partilha e acompanhamento dos seus irmãos e irmãs.
Em pleno século XXI, o que faz com que o homem mais poderoso da Igreja Católica, sobretudo Romana, mantenha, sem pudor nem razão, estas viagens de chefe de Estado, esta pompa descabida na memória das crianças abusadas por padres, moda em curso, além das vestes desenhadas de propósito, cadeiras novas, rcintos espectaculares, liturgias sem nexo, roupas ou paramentos sem austeridade, num teatro imperial, dois dedos em riste? A Igreja possui belos templos, e os países também, todos usáveis por um Papa que viesse de longe, sem farda, nem dourados, um pouco à maneira de Cristo, carismaticamente solto e breve, vestindo tecidos brancos. Não era mais decente, mais avançado, que não se usassem senão os equipamentos que existem? A missa poderia ser nos Jerónimos. Quem não coubesse veria a cerimónia como vão ver aqueles que não couberem no Terreiro do Paço. E um debate na Universidade, sobre o celibato, o papel da mulher, o planeamento familiar, as questões da homosexualidade, como lhe reconheceram direitos iguais a outros, aos heterosexuais, porque razão a liturgia não se simplifica e não dialoga mais em cerimónias lavadas, naturais, despojadas de passos, reversos e anversos? São tudo temas para uma visita rica e pedagógica, com abordagem da pedofilia e de outros maus jeitos da Igreja dos nossos dias. Tantos estudiosos, teólogos, dirigentes de importantes departamentos religiosos, e nenhum rompe com a castrante imobilidade das regras? As igrejas actuais padecem das maiores distorções e competições bárbaras, umas vivem em luta, misturadas com o poder civil, arrasando povos com a sua feroz leitura da chamada voz de Deus, incapazes de se tornarem reserva da paz, da reflexão, do convívio. E outras ainda praticam o genocídio. Encher Fátima com um milhão de peregrinos não pensantes, em martírios de promessas fúteis, comoção transitória ou rezas pelo fim da violância doméstica, outro problema a que os verdadeiros encontros deveriam legar ponderadas perguntas?
Em face da grandeza dos preparativos para mais esta visita do Papa, um velho «sem abrigo» andou uma boa meia hora a fazer a sua declaração de princípio. «O Papa deve empobrecer»

terça-feira, abril 06, 2010

A CONDENAÇÃO DO PASTOR PELO REBANHO


Esta história, que talvez contenha conteúdos de parábola extraídos dos terrores medievais, envolve a via atribulada de dois irmãos atirados de súbito para a orfandade, situação terrível e injusta que só podemos relacionar com os insondáveis desígnios de Deus. Só Ele, porventura, saberá dar sentido a esta trágica solidão das duas crianças, confrontadas com a morte súbita dos pais numa cheia dantesca. Só Ele poderá explicar a razão das escolhas, porque razão, ao mesmo tempo, se salvaram milhares de vidas, algures, do outro lado do Mundo.
Vivia-se uma época aterradora da limpeza moral intentada pela Santa Inmquisição, e as praças das cidades ou aldeias, com forte assiduidade, eram palco da execução de penas capitais, na morte pelo fogo, de gente condenada segundo códigos algo obscuros, atrás de denúnciais cruéis, muitas vezes presumivelmente falsas, actos de vingança ou perduráveis querelas. Tais condenações visavam criaturas tidas como bruxas, geralmente velhas, e homens ou mulheres acusados de actos impróprios, heresia, insulto aos símbolos sagrados, luxúria, entre outros.
Num casebre da aldeia de Clov, vivia uma família de camponeses, pai, mão e dois filhos. O mais pequeno não tinha ainda dois anos e o mais velho, sério, concentrado e responsável, rondava os sete anos. Era gente pobre, trabalhadora e honrada.
Tempo depois da morte dos pais, na casa sombria e húmida, viviam aquelas crianças, e tudo era tratado pelo moço mais velho, naturalmente, com alguns apoios dos vizinhos que moravam mais perto e sentiam compaixão por aquele destino. Não recolheram os miúdos para suas casas porque o mais velho, o José, nunca aceitara sair dali.
Certo dia, pela tardinha, um senhor da Igreja, vestindo de forma comum, que parecia ter grande vontade em ajudar os pobres e por isso escondia a sua origem, aproximou-se da casa das duas crianças orfãs, tendo conversado ternamente com o José e afagando as carnes e os cabelos do menino no seu canto acolhedor.
Dias depois, este mesmo senhor da Igreja, disfarçado de homem comum, voltou a visitar a casa das crianças, e chegou carregado de alguma comida e muitos doces. Afeiçoara-se aos orfãos, sobretudo pelo mais pequeno, a quem dispensava carinhos intensos, beijos longos, afagos insólitos, e até colocava o menino ao alto, sobre o seu peito descoberto, reclinando-se depois na cama, com ele, como a mãe fazia. O José, de início, olhava para tudo com grande enlevo, lavando louças e roupas, entre outras tarefas que o senhor por vezes lhe indicava, incluindo saídas para fazer compras longe dali. Foi nessa fase que o José, desconfiado, surpreendeu o homem todo nu, na cama, e com o menino enrolado no interior das suas pernas peludas. Foi posto na rua com um berro, voltando a casa quase ao anoitecer, com prudência, e logo correu ao ouvir o choro do irmão. O irmão encontrava-se meio vestido, sentado no chão, à sua frente um prato de papas entornadas nas roupas, apresentando os lábios em ferida.
Tempos depois, reposta a tranquilidade na sua casa e na vida do irmão, José deixou o menino na casa de uma vizinha, a cinco minutos dali, e foi assistir às matanças da Praça Maior. Queria espreitar e perceber tudo o que lhe diziam outros rapazes. E viu, assombrado, as fogueiras, ouviu os gritos, cheirou a carne queimada. Havia uma agitação contraditória em redor, carros chegando, guarnições militares, um palco com tecto, todo forrado em tom púrpura, e no qual, atrás de uma mesa longa, bispos, oficiais, juízes, todos se afadigando entre papéis, gestos, audições. Juntos, vistos de frente, até pareciam uma representação luxuosa da última ceia de Cristo. Ao olhá-los assim, frontalmente, o José, de repente aterrado, reconheceu num bispo da mesa o homem que lhe visitara a casa e que abusara do irmão. Era uma descoberta grave, o outro sentado no lugar de Cristo, conduzindo os trabalhos e bebendo goles de vinho. O bispo era, sem tirar nem por, o religioso sem farda que os invadira a casa da inocência e praticara as piores heresias.
José, atordoado com os fumos da carniça e aquela gente que já condenara um amigo dos seus pais, correu numa direcção aparentemente errada: queria falar com outro homem bom, mestre escola, que sempre dialogara com os pais e comia muitas vezes lá em casa, parecendo haver uma estranha cumplicidade entre todos. O encontro, depois da fala soluçada, era mais do que uma denúncia, era um acto desesperado de vingança ou de reconquista de uma dignidade ofendida. O professor soube rapidamente quem era aquele «santo» homem, o Bispo, Bispo Coordenador, Encomendador dos Processos em Curso. Foi longa e sombria esta história, pois os membros da Inquisição, quando eram acusados de terríveis delitos, acbavam sempre perdoados e por vezes nem os deslocavam daquele «campo de operações». Desta vez, houve uma diferença. Um dia, no final de horas de condenações e mortes na fogueira, apareceu um Cardeal, com pomposa comitiva, mostrando estranhar certas coisas e acabando por exigir a consulta de todos os documentos relativos aos processos. Perante uma tensão dos outros, ele puxou pela espada, colocou-a diante da face, e mostrou as insígnias que lhe conferiam aquela autoridade. Andava a mando do rei, como hoje andam alguns inspectores, pelas indústrias e comércios. Nunca se soube como, mas a verdade é que ele depressa descobriu o comportamento do bispo e as suas recentes luxúrias com uma criança de menos de dois anos. Houve uma reunião do «Senado» daquela divisão, onde se fez pública forma do acto enfim conhecido, e mais se propôs que a Igreja começasse a dar o exemplo: o juiz leu a decisão dos seus pares, condenando o bispo à morte pelo fogo, naquela mesma tarde.
O feitiço voltou-se contra o feiticeiro. Hoje nãoo acontecem tais cometimentos, até porque, desde o século XX, que todos os casos descobertos nas fileiras da Igreja andaram longos anos encobertos e a justiça demorava uma década para resolvar um simples caso de homicídio. Por vezes, alguns padres foram suspensos, convidados a sair, votados a penas de solidão, mais do que o Chefe religioso maior, Pai de todos, aquele que bondosamente costuma apresentar desculpas aos povos e sociedades lesadas por remotos crimes, entre famílias acabrunhadas, entre a fé e o horror. Há outras e muitas desculpas a apresentar, mesmo a título póstumo, está bem de ver, considerando civilizações arrasadas em nome de Cristo, as terríveis Cruzadas e de novo, de melhor forma, a própria Inquisição, ou os bloqueios grosseiros perante a ciência, de que Galileu é um exemplo da maior referência. Tudo isso, em boa verdade, serve de pouco. Mas os símbolos marcam muitos os actos desde bastante cedo. Convocar o espírito da Civilização e o próprio Deus para estes litúrgicos pedidos de desculpa talvez viesse iluminar um pouco a época, apesar dos segredos que vão sobrando nos subterrâneos da História.
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O rebanho, nos nossos dias, não se basta com a fé do pastor e as
ovelhas são mais o símbolo da comunidade e da sobrevivência do
que gente empurrada para castigos sem explicão.