Durmo cansadamente, após os gritos da violência que voltam em sonhos inenarráveis à minha cabeça incendiada, olhos vermelhos de sangue não derramado. Têm sido estas as minhas noites ao lado dos véus amarrotados, de noivas mortas, agora já entregues no hospital para servirem eventualmente de ligaduras ou fingir de lençóis. Estão limpos, amarrotados mas limpos, e são leves, talvez dos quartos abandonados no sul pelas crianças que as minas mutilaram e os pais arrastaram pela selva, magras, de olhos grandes e moscas a rondá-los, enquanto aquela gente atravessava uma parte dos Dembos, murmurando dores. É isso o que vejo, atrás de janelas fechadas, nem risos nem corridas, bué Numbaca, boinas azuis ajudando a gente a chegar perto da água, a dois quilómetros da grande cidade. Se calhar estou já meio acordado, porque os panos brancos, enrodilhados e brancos, existem sobre camas de ferro e as sirenes abrem caminho pela rede apertada dos muceques. Menino não chora, mosquitos e moscas foram embora, é preciso lavar as feridas, pintar tudo com betadine, levar pica e dormir, sem sonhos, enquanto o dotô cura a metade da perna e faz todos andar com muletas. Tu estás vivo, menino, importa mais do que ter as duas pernas. Importa? Ué. E como menino vai jogar bola na terra do aldeia?
Acordo assombrado, a cama bem perto de uma janela de cidade, os véus lisos e suspensos em picado, um chão de madeira na sombra. Acordei assim, cheirava a remédios e olhei para cima e vi a janela de cidade com os véus branco-cinza subindo ou caindo geometricamente. Todo o mundo onde o homem sobrevive como nestes casos é feito destes pontos na distância, vemos um vértice que não existe, estou de cabeça tonta, estas linhas têm de ser paralelas, enfim paralelas após um acordar inteiro e eu já estiver de pé, comendo uma côdea de pão amassado pelo diabo.
Pensando bem, puxando bem pela minha condição e consciência, como é que o menino vai jogar à bola na terra da aldeia?
2 comentários:
Nós é que fazemos os meninos infelizes ou, melhor, os julgamos infelizes...
li. Senti. Sinto. E quedo-me. Não paralisado mas dorido. Não sei comentar porque não há que comentar. Mas mudar.
E a sua escrita é poderosa.
Fraterno abraço
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