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sexta-feira, agosto 31, 2007

UM RIO REVISITADO AO ENTARDECER



fotos de rocha de sousa
Revisito de novo, após centenas e centenas de olhares outrora, o rio onde a minha infância se tornou razão, idade da razão, e a água era por vezes excessiva, transbordando as margens, mergulhando a baixa da cidade num lago lodoso, trágico para os comerciantes, mas fascinante para quem, salvo desse desconforto, fazia barcos de papel e depunha-os na corrente vagarosa, lá iam eles, aos pares, por vezes em bandos como aves navegantes. Agora, e só na maré cheia, as águas atingem o ponto exacto na paisagem, suspendem a passagemsegundo a ordem da Natureza, ficando assim, levemente arrepiadas pela brisa, espelhando as margens, os arcos da ponte, o verde as ávores, o azul do céu. Olhando para estas imagens e reordenando as memórias de há muitos anos, sobravam milhares de temas, águas subindo e descendo numa ordem de 24 horas, eu e outros amigos do Hermenegildo trepando para o barco dele, razoavelmente grande, de respeito, com uma pequena casinha à proa. Tinha quatro remos e a nossa alegria salvadora era o treino de outros tantos meninos treinando a acção de remar, remar sobretudo em sincronia e bem, porque do leme tratava o Hermenegildo. No termo da viagem, navegação ponderada por nós, ali ficávamos fluando, a mergulhar, por vezes munidos de armadilhas para apanhar enormes caranguejos que havia em quantidade no fundo. Difícil era trazê-los, como despojo da aventura, e por isso devolviamos ecologicamente as criaturas ao rio. Ali mesmo, junto da ilha da Nossa Senhora do Rosário. Há poucas coisas tão inúteis e tão belas quanto esta forma de brincar.

domingo, agosto 26, 2007

VÉUS DA CONDIÇÃO HUMANA


Durmo cansadamente, após os gritos da violência que voltam em sonhos inenarráveis à minha cabeça incendiada, olhos vermelhos de sangue não derramado. Têm sido estas as minhas noites ao lado dos véus amarrotados, de noivas mortas, agora já entregues no hospital para servirem eventualmente de ligaduras ou fingir de lençóis. Estão limpos, amarrotados mas limpos, e são leves, talvez dos quartos abandonados no sul pelas crianças que as minas mutilaram e os pais arrastaram pela selva, magras, de olhos grandes e moscas a rondá-los, enquanto aquela gente atravessava uma parte dos Dembos, murmurando dores. É isso o que vejo, atrás de janelas fechadas, nem risos nem corridas, bué Numbaca, boinas azuis ajudando a gente a chegar perto da água, a dois quilómetros da grande cidade. Se calhar estou já meio acordado, porque os panos brancos, enrodilhados e brancos, existem sobre camas de ferro e as sirenes abrem caminho pela rede apertada dos muceques. Menino não chora, mosquitos e moscas foram embora, é preciso lavar as feridas, pintar tudo com betadine, levar pica e dormir, sem sonhos, enquanto o dotô cura a metade da perna e faz todos andar com muletas. Tu estás vivo, menino, importa mais do que ter as duas pernas. Importa? Ué. E como menino vai jogar bola na terra do aldeia?
Acordo assombrado, a cama bem perto de uma janela de cidade, os véus lisos e suspensos em picado, um chão de madeira na sombra. Acordei assim, cheirava a remédios e olhei para cima e vi a janela de cidade com os véus branco-cinza subindo ou caindo geometricamente. Todo o mundo onde o homem sobrevive como nestes casos é feito destes pontos na distância, vemos um vértice que não existe, estou de cabeça tonta, estas linhas têm de ser paralelas, enfim paralelas após um acordar inteiro e eu já estiver de pé, comendo uma côdea de pão amassado pelo diabo.
Pensando bem, puxando bem pela minha condição e consciência, como é que o menino vai jogar à bola na terra da aldeia?


fotografias de Rocha de Sousa

terça-feira, agosto 21, 2007

FECHADOS OU FALSAMENTE ABERTOS, OS CAMINHOS DE HOJE


Não tenho meios para aceder aos melhores patamares do conhecimento do mundo. Quando procuro ultrapassar mais um obstáculo, embora a morte me espreite a qualquer esquina do tempo, encontro frequentemente portas fechadas e janelas falsamente abertas, estilhaçadas como naquele andar, ali, que me torna o olhar enviesado. De resto, os nossos passos são cada vez mais assim e os jovens usam aleatoriamente, sem projecto, a versatilidade deles. Não é fácil digerir entretanto a derrocada dessa liberdade mal usada e a imensa perda de valores que vão sendo engolidos pelo caos em redor, substituídos por outros claramente redutores, numa paisagem turvada pelas matérias venenosas do progresso. Muitos de nós recorrem a alguns talentos que os tocou desde cedo e procuram no caminho das artes a porta da salvação. A proliferação, no século XX, deste tipo de operadores explodiu como a teoria do Universo, desconstruindo as partículas iniciais e multiplicando até ao infinito outras junções, formas e aparências. Inventaram mais portas do que as encomendadas durante a Renascença, oração do poder em nome da sua fortuna. Desde esse tempo, parecendo que não, já se pensava a arte na procura de certas originalidades, mas cada vez mais na consciência de que ela não servia para ornamento do mundo. Deste lado do fazer, havia um longo processo e aprendizagens, o florescimento da habilidade manual, milagrosa, embora os esplendorosos resultados das obras daí resultantes vivessem afinal pressupostos espirituais insustentáveis: a fragmentação dos géneros, no século XX, desfez os escondimentos da ciência, instaurando a ideia de projecto e a própria ideologia que serviram para nos informar obliquamente de todas as nossas urgências.
Os caminhos de hoje, embora gerem uma cultura vastíssima (redutora, em paradoxo) produzen entrechoques das formas, dos trajectos, e são praticamente alheios ao modo como se exerce sobre os povos a sufocação, o medo, entre a miséria extrema e crianças abandonadas na berma da estrada. Em cada primeira cidade que encontramos, a guerra alastra como uma impensável epidemia, à qual se juntam as espicaçadas forças da Natureza, fúria cósmica. Por momentos, diante das portas fechadas, velhas e feridas pelo fogo mas fechadas, surge a anunciação de certas janelas abertas, vandalizadas, como que espelhando os céus azuis, aceno de primaveras afinal duvidosas, após a deslocação das populações para lugares de ilusória salvação. Aqui, ao ver uma dessas janelas escancarada no primeiro andar de um prédio arruinado, ocorreu-me a ideia da escalada até ela, logo negada pela falta de meios, e de resto, pela realidade dos fragmentos, quem chegar à balaustrada da abertura, procurando sofregamente o significado pacificante do céu azul, logo cairá, sem dúvida, no interior do edifício, esfacelando-se nos seus incontáveis destroços.
Lembrando melancolicamente a denúncia da brutalidade sobre Guernica, sinto-me abandonado de mim mesmo: e compreendo que há em nós, desde sempre, uma natureza hedionda, com breves instantes de contentamento, e vejo o que faz arder a Palestina, a morte e o exílio na Thechenia, os massacres do Uganda, entre dezenas de outras feridas assim, na possível infecção sem retorno, além dos mitos da tal esperança que é, na culminante mentira, a última a morrer.

domingo, agosto 19, 2007

A MORTE NÃO É UM FIM, É O FIM

Breve visita a um cemitério de província, no sul, eis-me a guardar o que já guardara aqui, neste mesmo lugar, na circunstância dos meus próprios mortos. Continuo a pensar estes lugares em termos de territórios onde se repetem, na diferença e na semelhança, quase sempre em mármore branco, as moradas rasas de gente que acabou embalada numa cerimónia tão bela e tão inútil como as suas vidas mais ou menos interrogadas, mais ou menos produtoras de história, intérpretes de afectos, tudo em redor de grandes e pequenos acontecimentos que moldam o mundo e nuncam o explicam.

De ínício, após a morte de um ente querido, a sagrada unidade do círculo, estruturando a coroa de flores, rege esse objecto de despedida, de certeza, porventura de fé, simbolizando as palavras e os risos de outrora, a realidade ainda consagrada da família entre milhares de povos e gente a nascer para que haja amanhã, para que possam viver, assim frescas, as imensidades de flores no seu território fecundado, seres mudos mas apelativos, que também nascem, crescem e morrem, sem que os homens, seus admiradores, pensem numa alma para elas e guardem os ramos secos, mortos, amputados da terra, acabando indeterminadamente num caixote do lixo.






Um nome oxidado, como tantos outros, é dito erradamente no seu jazer, como talvez tenha sido grande parte da sua vida, aqui matriculada com o código F. 4. A2. A968, estranha memória que podemos decifrar numa outra não menos obscura: Falecido em 4 de Fevereiro de 1968. José Nascimento foi homenageado junto de outros parentes, presumo, mas a notícia da sua morte falece na margem da sepultura ali ataviada com mais zelo.







Há muitos anos que vejo nos cemitérios de província estas velhas redomas onde repousam, atrás de um vidro, as imagens ou almas dos falecidos de outrora. Talvez eles, em vida, tivessem pensado a morte como um fim, ou seja, como a passagem desta existência para outra dimensão de paz, as famílias em concórdia, sem feridas, como naqueles sonhos em que o céu é branco e há muitos anjos, alguns sem asas, saltando, vogando em redor das crianças acabadas de morrer.



Quando as flores arrefcem, morrendo em palidez, há sempre um portão para fachar


sexta-feira, agosto 17, 2007

A ROCHA DAS ÚLTIMAS ESCRITAS

ou a última paisagem técnica mista

quarta-feira, agosto 15, 2007

O QUARTETO DOS RESTOS URBANOS



foto-colagens de Rocha de Sousa
Nada está concluído no Universo e nada, muito menos, está terminado no mundo das linguagens de todos os tipos, da literatura, ao cinema ou às artes plásticas. Cada problema que se levanta no risco da nossa consciência e do nosso imaginário confronta-nos com equações muito complexas, a várias incógnitas. Este «Quarteto» tanto pode pertencer ao domíno do desenho, como ao da pintura e colagem, como ainda ao da fotografia. Um posto de apresentação como o que nos é dado em termos de «blog» não tem margem senão para sinalizarmos as questões e falar um pouco em torno delas. De pequenas dimensões, esta obra de quatro unidades é constituída por um espaço de negros, sobre os quais, ou dentro deles, no limite superior, pequenas coisas nos indicam existências pretéritas ou bases de uma passagem no falso horizonte: uma pegada na areia de cor quente, um perfil cortado de janela antiga, texturas de paredes degradadas, bocados de ferros e parafusos, paredes de navios, à escala, molduras de carros, fragmentos de fotografias em torno de tais percursos, arrumadas de uma forma assim, como quem espreita restos do mundo numa geminação meramente quantitativa. Trata-se de um engano: por muito que nos pareça possível, não há quantidade sem qualidade. Aqui, pelo jogo dos encontros e dos falsos contrastes, a qualidade toca a comoção do intangível, ainda que a parte de algo que nos ultrapassa escorra pela nossa pele com as últimas lágrimas.

APLICAÇÕES DA TÉCNICA ANTERIOR




Para quem olhar estas imagens, poderá fazê-lo de baixo para cima ou de cima para baixo, isso é relativo, depende do projecto do ver. Confirmará que a estrutura das figuras é a mesma para todos os casos, embora diferente, nessa semelhança, quanto à estrutura cromática. É um vai e vem de natureza peculiar às estratégias do nosso olhar, para que a visão se conclua, embora por cada universo de cores, aqui ou no «post» seguinte, implique relações de gosto, uma adequação formal, a prova de como o mesmo quadro depende sobretudo do seu universo cromático e tonal do que da subjacente imagem que lhe deu liberdade presencial. Este (e sobretudo com técnicas digitais) é apenas um modo de formar, de relativizar a forma, não uma escolha melhor do que que as figurações de base ou outras mais realistas. Estamos a operar em campo aberto.

METAMORFOSE PICTÓRICA DOS CARTAZES


Fui procurar cartazes colados desde há muito nas paredes: cartazes rasgados depois, diversos anos depois, fados sobre riquezas, os bancos a vender poupanças, letras brancas, indecifráveis, sobrepostas a paisagens de turismo, em muitos casos fundos negros a ressaltar corpos inflamados. Atirei tintas sobre os rasgões e uma nova imagem de fracturas e sobreposições surgiu na reprodução fotografica que fizera da fotografia original. Meu Deus, que fascínio, a pintura solarizara-se, tornara-se veemente, absurda e maravilhosamente desconexa. Agarrei então num pincel virtual (o próprio dedo) e juntei franjas, adoçei cortes, procurei que as dissonâncias funcionassem apenas como tal, mesmo que o valor artístico não passasse da primeira aprendizagem entre as anteriores. Guardo o resultado ainda pobre para sentir o trabalho dos dedos sujos numa experiência assim, com tintas verdadeiras. Esta verdade é a mentira que desbravou caminho para fingir uma nova verdade.

sábado, agosto 11, 2007

FEIRAS MEDIEVAIS, VELHAS TRADIÇÕES


Estas imagens referem-se à Feira Medieval de Silves, manifestação tradicional que liga épocas e povos, e que, embora algo tosca por falta de uma logística do verdadeiro grande espectáculo, não impede as pessoas, todas em geral, de se misturarem entre barracas, comes e bebes. Entretanto há os majestáticos desfiles para seguir, danças, ritmos arabizantes, tudo isso envolvendo petiscos insólitos, de origens e lugares remotos, ou daqui mesmo. Conforme um calendário, volta-se ao contacto com as artes da magia do fogo, os torneios medievais, um teatro rude em que se contam alguns episódios da história da cidade, sobretudo após a sua conquista e durante um período distante da vida rude, do trabalho e das crenças correntes.























fotos de Rocha de Sousa

sexta-feira, agosto 10, 2007

A OFICINA DO PINTOR

foto e arranjo digital de rocha de sousa
Esta pintura, como habitualmente realizada pelo autor do blog de «construpintar02», não é, bem vistas as coisas e no recurso à memória clássica, um conjunto de formas plásticas trabalhadas a cores de óleo sobre tela. Não se trata de um produto muito explorado, levando a efeitos mais sensíveis, mas antes da investigação básica em termos digitais e copiado para papel. O que parece um dos desenhos-pintura já apresenbtados aqui (ver arquivo) é agora a associação da fotografia ao processo gráfico anterior. À partida, o autor realiza uma fotografia de parte do atelier, entre o cavalete, mesa de trabalho e outros elementos. A luz artificial foi introduzida no registo fotográfico, tendo ele uma conclusão consistente. Depois, e com um programa de edição, foram aplicados mais valores e «tintas» ao modelo, tendo resultado dessa operação um aspecto pictórico geral que ultrapassa ou se equilibra com a fotografia. Este caminho pode ser percorrido com outros meios e escalas. E naturalmente com um sentido mais sofisticado.

ARTES PLÁSTICAS: OBRAS DE 70 E 72


Esta pintura de Rocha de Sousa, dos anos 70, corresponde a uma mistura latente de elementos orgânicos, numa fragmentação despojada de cor e exprimindo contorcionismo da sua emergência vertiginosa, algo que se desprende de cima e se deixa prender por estruturas geométricas, porventura ligadas ao espaço urbano, entre arrumações desajeitadas e cromaticamente envelhecidas, zebras publicitárias apodrecidas e reciclagem de tintas de fundo que o tempo ou as intempéries não pouparam. Tudo se arruma e desarruma, os pedaços de corpos transformados em roupa e panos brancos, que fingem anatomias algo fantasmáticas.



Aqui, a geometria tem afirmações mais gráficas e dinâmicas. Não há colorismo mas, na diferença, surgem, a preto e branco, lógicas orgânicas e planos descritivos, como se a pintura anterior se tivesse nivelado, sintetizado, enfim despojada de alguma permanência representativa agora mais rectilínea, a despeito de organismos menos ligados à matéria de qualquer chacina, tendo em conta o que possa persistir dessa realidade nos recortes aleatórios.

OS ALIENÍGENOS AQUÁTICOS




Este animal borbulhante, de várias cabeças, a flutuar nas águas da sua fome, não cabe em nenhum aquário de escala humana, e pode devorar simultaneamente cinco Petúlias, enquanto caça mais seres através de uma boca gigantesca que o ladeia. Mas há aqui uma luta de vida ou de morte, dardos atravessando o estranho ser, vindo não se sabe de onde, mas que a mais remota fomação do nosso psiquismo engendrou (ou copiou): o aquário deste ser inominável, cujas réplicas, disfarçadas em gente obesa, se aproximam das praias corroídas por centenas de milhares de grotescas figuras, cada vez mais monstruosas, vivem (em réplica) no mais fundo do nosso inconsciente.

OS AQUÁRIOS DE TODAS AS PETÚLIAS
















Um amigo meu, engenheiro em Luanda,
tinha certamente a melhor biblioteca da cidade.
Mas tinha também belas obras de arte local. Entre as coisas mudas

da cultura, amadurecidas nos próprios objectos
ornamentais, fazia-se acompanhar por um magnífico aquário onde
flutuava um peixe com barbatanas como véus
e ao qual ele chamava petúlia.


















Este animal aquático imita razoavelmente a Petúlia
do meu amigo de Luanda. Reside tanbém num aquário
e suponho que não saberia viver no mar. Talvez,
isso sim, em certos lagos límpidos, entre rochas.
Não sofre de pesadelos, apenas sonha ao de leve
como um balão colorido imerso a meio do líquido.
















Os cativeiros afinal multiplicam-se. Para peixes e para humanos,
sem contar com a barbaridade que se abate sobre o planeta
e segrega pessoas em aquários destruídos pelas tempestades,
sem peixes, água barrenta e altamente contaminada
onde as crianças passeiam e brincam como na mais
perdida das praias fluviais.



















Os peixes, mesmo as Petúlias, mesmos os ornamentais,
também têm o seu apocalipse.
Nós fingimos não dar pelo nosso, mas eles, com o seu habitat
desfeito pelos tumultos do mundo, acabam sem respiração,
abrindo e fechando a boca.
Em silêncio.
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fotos rocha de sousa